CULTURA & EDUCAÇÃO

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‘Tempo e temporais rugindo na memória’ / Itaney Campos

Itaney Campos: ‘O texto corrido, inteiriço, sem subdivisões em capítulos ou títulos, o faz algo árido e, em certos momentos, uma pedreira. Mas de pedras é que se ergue uma catedral. Parece ter sido essa a intenção do escritor, lapidar o texto como se lavra um bloco de mármore até fazer brotar nele a obra de arte’.

Professor Manoel Bueno de Brito (Nequito), na cerimônia de integração à Academia Goiana de Letras – Foto: AGL/GO

 

À guisa de discurso, a ser proferido – como proferiu – na sessão inaugural de sua integração à Academia Goiana de Letras (AGL/GO), o professor Manoel Bueno de Brito, o Nequito, poeta de nomeada, constrói, ou reconstrói, não uma peça de retórica, mas um texto de surpreendente carga literária, a que dá o título de Do tempo ao temporal, reprisando nele, de certa forma, a intrigante beleza que deixara impregnada em A Serra no vão dos rios, narrativa sui generis publicada em 2019, às vésperas do abismo da pandemia que aterrorizou o mundo. Em Do tempo ao temporal, o escritor mergulha no universo da sua infância de menino do interior, filho de pais humildes, rurícolas, mas esclarecidos e determinados, numa cidadezinha que respirava os valores da cultura rural, os hábitos da roça, os costumes da fazenda.

E nos surpreende, uma vez mais, com uma narrativa de alta voltagem literária e difícil classificação em termos de gênero, por reunir poesia em prosa, considerações filosóficas instigantes e densa criação ficcional, com pitadas de ironia e argutas digressões, emocionando o leitor atento em face da fascinante e polissêmica teia que urde em seu livro. Aqui percorre o tempo, como um cavaleiro moderno, um Quixote de olhos bem abertos para o mundo, a quem dá estocadas de ironia, ora leves, ora acerbas, beirando o sarcástico, abrindo-lhe as feridas, com o claro intento de lancetá-las, a ferro e fogo. Em outros momentos, no curso da narrativa de um episódio da humilde infância, transpõe-se, em lance quase mágico, proporcionado pelo absoluto domínio das palavras e seu conhecimento erudito, para uma passagem ou ocorrência inserida nas narrativas universais, criando um link que conecta fatos de sua meninice rural aos contos e cantos da literatura mundial. Assim, o escritor transita entre poemas de Drummond, citações de James Joyce, excertos de poemas de Verlaine e versos de Tião Carreiro e Pardinho, Guilherme Arantes e Chitãozinho & Xororó. A trama, centrada no registro de reminiscências, é entrelaçada de reflexões, observações, denúncias e considerações sobre a sociedade e o homem nele inserido, focando as contradições e perplexidades próprias da era contemporânea, sobremodo da realidade brasileira. O tempo não é o cronológico, mas o subjetivo, e as propostas e relatos revestem-se às vezes de alta complexidade, porque engendradas sob o prisma filosófico e sociológico, sem prejuízo do fio das lembranças que as costura e insere no contexto geral da inusitada criação. Nequito revisita no seu discurso, como já se disse, a adolescência  nos cafundós  da roça, ressignificando as cenas, as relações, as atividades produtivas e o convívio social que marcaram o seu tempo de menino. Insere na categoria do maravilhoso episódios que sob uma ótica burocrática ou de ralo imaginário pareceriam banais ou rotineiros. Assim é que reconstitui a memória dos objetos da manufatura cultural de Goiás dos anos 30/40  do século passado, como se confere nesta passagem:

“Por falar em invenção primitiva, me veio à lembrança o carretão. A impressão que guardei, pela aparência, quando ovo pela primeiramente, foi a de que a roda acabava de ser inventada. Meu pai, sozinho no serviço de construir, ali, junto do córrego da Água Fria, a casa da primeira morada, recém casado que era com Jordana, filha do meu avô, Vicente Rodrigues de Brito… […]. Arrastar, na bruta, as toras de aroeira dos esteios  era judiar demais da junta de bois de estimação. O Ximango e o Ritinto. Não demorou até ele lavrar as peças, fazer as rodas e montar o carretão, precursor rudimentar de todos os carros, com o que chegou ao uso providencial da força mecânica, no lugar da força bruta.”.

Depois, Nequito descreve, com graça e bonomia, reportando-se às impressões da infância, os primeiros empregos, como quando foi alçado à condição de bibliotecário, mas não apenasmente um auxiliar de biblioteca pública. É impressionante a carga de deliberadas associações, que fazem com que o escritor possa mover-se do local para o regional, do provincial para o universal, fluindo numa linguagem tecida com erudição, com absoluto domínio do vernáculo, desnudando as facetas das palavras, explorando-as em seu significante e seu significado, contextualizando-as, com diferentes matizes, e manipulando-as num jogo, ora lúdico, ora reflexivo, ora sarcástico, a exigir redobrada atenção do leitor para assimilar a extensão conceitual presente no texto.

Poderia ocorrer a alguém, que tivesse acesso ao relato, a impressão de que, pontualmente, se deflagrasse alguma desconexão interna na narrativa, apontando nesse aspecto o retalhamento dos episódios e o trânsito caótico das referências, ocasionando obscuridade, provocando dispersão da leitura. Uma observação menos atenta apontaria prolixidade interna, decorrente do excesso de entrelinhas, de sinonímias, de duplo sentido e uso da ironia. Pois o que aos demais possa causar perplexidade, confesso que a mim me provocou admiração, e espanto, pois ao longo do texto o autor destila a sua cultura erudita, marcada pela universalidade, humanismo e atemporalidade.  Aos fenômenos da hipocrisia ele reserva o sarcasmo; ao fingimento, a ironia; e aos avatares da bondade e da arte, palavras de reverência, citações exemplares e metáforas primorosas. Na sequidão que desponta, por vezes, em sua história pessoal, ele sabe regar a paisagem interior com as tintas do afeto e do reconhecimento, sabe agradecer e sorrir de suas aventuras juvenis e dos seus ímpetos verdolengos. E é interessante e lúdico o jogo que desenvolve, ao entrecruzar, por vezes no entrecho narrativo, cantos e excertos da alta poesia com trovas e versos dos repentistas e cantores do alto sertão, ou das periferias urbanas, sem resvalar para o mau gosto ou o farsesco. Pode não ter sido o intuito mas o escritor deixa entrever que as manifestações culturais de quaisquer matizes merecem respeito e referências, inserindo-se na grande e trágica e fantástica trama do percurso do homem sobre a face do planeta, ao longo de gerações. Às vezes, o narrador se nos afigura como um profeta bíblico, a lançar expressões coléricas sobre a (des) humanidade predatória, logo adiante, deparamo-nos com um poeta virgiliano a navegar pelos mares das reminiscências, contemplando-se como narciso à beira do lago remansoso da infância, em busca talvez do menino esperançoso e esforçado a debater-se nas profundezas da subjetividade. Suas elucubrações sobre cultura estendem-se, de forma instigante e curiosa, por vários parágrafos, iniciando-se com a constatação de que “o nome que a alma recebe nas mais variadas formas de presença e expressão da humanidade é CULTURA. Ou cultura é como se invoca o espectro (in) corpóreo, ou alma panorâmica, da humanidade, fenômeno em que se entretecem e se inteiram Saber (diverso, amplo, multiforme – de e em qualquer ordem), Técnica, Literatura, Ciências, História, Artes, Pensamento, Memória. Práticas vivenciais de subsistência, sobrevivência, coexistência e convivência: laborais, políticas, sociais. Dom. Crenças. Costumes, Ritos. Aptidão para (‘incrinação’, como sabido e pronunciado). Jeito de ser. Não se exibe, portanto, em pomposa ilustração, ou em vistosa erudição, embora seus respectivos substratos, quando oportunos, não se percam nem as desmereçam […]”. Nequito insere notas de bom humor, de afeto, em suas relembranças. Transcreve de forma literal a expressão oral dos seus conterrâneos e contemporâneos sertanejos, num corte marcante do texto, com o poder de surpreender o leitor, pois o que o escritor faz é dar à oralidade o status de expressão digna de registro livresco, despida do caráter folclórico ou vicioso que lhe atribuiu à literatura regional. Sua literatura se transveste, em certos momentos, de textos para os iniciados, tais as preciosidades que nela refulgem. Recortes linguísticos transportam o leitor para tempos antanhos, e ambientes rústicos, revelados nos diálogos com as marcas da linguagem ‘caipira’. Não se trata de texto de fácil leitura. Pelo contrário. Sua apreensão demanda constante atenção e reflexão, por vezes, em certos momentos, exige dupla leitura para se apreender de forma apropriada a mensagem veiculada. Não é uma escrita de fácil urdidura, e nem uma leitura de leve realização. O texto corrido, inteiriço, sem subdivisões em capítulos ou títulos, o faz algo árido e, em certos momentos, uma pedreira. Mas de pedras é que se ergue uma catedral. Parece ter sido essa a intenção do escritor, lapidar o texto como se lavra um bloco de mármore até fazer brotar nele a obra de arte. A arte que supera a circunstância, a arte de permanência, a verdadeira produção artística. Literatura liberta da temporalidade, ainda que atravessada por temporais; literatura tecida com martírio, que martirizante é a trajetória humana ao longo do curto tempo de sua existência terrena (outra haverá?).

 

[Agosto/22.

 

Itaney Campos, natural de Uruaçu, é, entre outras funções, escritor, poeta, membro da União Brasileira de Escritores (UBE) – Seção Goiás, da Academia Goiana de Letras (AGL), da Academia Goiana de Direito (Acad), da Academia Uruaçuense de Letras (AUL), do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), desembargador e atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-GO)

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