OPINIÃO

DIVERSOS

‘Nosso Luciano’ – Eduardo Sinkevisque

Você-você é teu nome

És quem ressurge e quem some

Do outro lado do oceano

-Caetano Veloso

 

Ouvi a expressão “nosso Luciano”, para se referir a Luciano de Samósata (séc. II da Era Cristã), do Professor Jacyntho Lins Brandão na noite de autógrafos do livro em que ele traduz o Como se deve escrever a história. Mais do que ouvir, li isso no exemplar que comprei e o Professor Brandão autografou para mim.

À altura, eu já conhecera alguns estudiosos de Luciano. O sírio helenizado, de quem se conhece pouco de sua biografia, chama-se Luciano, é sírio, como disse, e nasceu entre os anos 115-120 na cidade de Samósata, antiga capital do reino de Camogema. Sabe-se também que Luciano foi sofista afamado e que viajou pelo Império Romano dos Antoninos como advogado.

Luciano era de Brandão, meu e de muitos outros naquela noite de autógrafos em Ouro Preto. E, tem sido de muitos outros no Brasil e fora dele.

Edson Arantes Junior é um desses lucianistas, um dos professores em quem a expressão “nosso Luciano” cabe. Não apenas por estudar o samosatense desde o mestrado em que se debruçou sobre as imagens de Héracles nos escritos de Luciano (2008), por ter continuado a estudá-lo, mas, principalmente, por ter lançado o livro, fruto de seu doutoramento, Luciano e os mitos: Sociedade, política e memória no Império Greco-Romano (Editora CRV, 2022).

O “nosso Luciano” para ficar apenas entre mim, Brandão e Edson, ganha um estudo bastante “instigante” nos dizeres de Brandão, que assina o texto de quarta-capa do livro de Edson.

Edson Arantes Junior investiga qual tratamento Luciano dá aos mitos em sua vasta e variada produção discursiva. A premissa é a de que o polígrafo de Samósata sabe que os elementos míticos tradicionais da cultura e do poder imperial, uma vez manejados, podem ser usados justamente para subverter a ordem simbólica desse mesmo poder.

Como salienta Brandão, lidar com os mitos não se trata de se debruçar sobre o verdadeiro e o falso, mas ter em perspectiva os regimes de verdade, à maneira do que propõe Paul Veyne, que Arantes Junior também lê.

Personagens míticas, as mais emblemáticas da cultura helenística do tempo dos Antoninos e anterior a eles, claro, como Momo, Zeus, Prometeu, os mortos do Hades, cujas vozes críticas falam nos diálogos e em outros discursos do samosatense, são analisadas por Edson Arantes.

A chave, hipótese de trabalho na tese-livro, é a da aproximação da parresia socrática, seu estatuto como maneira de dizer e pôr em questão imagens como as do tirano entre os dilemas políticos e de formas de pensar a política durante a chamada segunda sofística. Parresia é uma espécie de franqueza, de sinceridade (uma fé estilística, fides) que permite dizer a verdade. A Tese demonstrada é, então, a de que os mitos funcionam “como ordenamento metanarrativo que organiza os usos das memórias”.

“Nosso Luciano” tem seus discursos, diálogos, orações, etc, de gênero joco-sérios, esmiuçados por Edson Arantes em três acalentados capítulos que vão do Estado da Arte às considerações finais, como é de se esperar em trabalhos acadêmicos como teses de doutorado, porém com fôlego de maratonista e lupa (ou microscópio) de investigador.

O leitor atento percorrerá, guiado por Edson, Luciano, o Império Romano e a segunda sofística; as narrativas míticas do costume (consuetudo) e as apropriações que Luciano faz da Paideia helênica ao manejar essas narrativas míticas com a “intensão” de produzir o riso crítico, mobilizador do pensamento e da ação política. Edson demonstra que, em Luciano, o riso é satírico, “veículo das ideias políticas.” Rir permite questionar e possibilita fugir dos mecanismos de censura presentes no Império Romano.

O exemplar que gentilmente Edson Arantes me enviou pelos Correios está com anotações marginais, muitas, com exclamações, interrogações. Li-o com lápis. Edson acumula muitos anos de leituras de Luciano. Seu doutorado, embora com uma hipótese demonstrada, e específica, evidencia sua familiaridade com os textos todos do polígrafo de Samósata e seu fôlego analítico é, como disse acima, o fôlego de um atleta.

Fui fisgado por Luciano, há muito, ao ler o Como se deve escrever a história nas apropriações e traduções do século XVIII português.

Ler lucianistas, como Edson, fez com que aos poucos fosse me tornando leitor de Luciano. No meu caso, Lucianos, pois leio como se deram muitas das apropriações, das valorações dele em “traduções culturais” ibéricas dos séculos XVII/XVIII.

Em todo caso, leitor de Luciano de Samósta, posso dizer que aqui exerci toda a liberdade. Arrisco a dizer liberdade de poeta, de um hipocentauro, como Luciano é interpretado por Jacyntho Lins Brandão.

 

Alto de Santana,

Aos 21 de agosto de 2022.

 

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715), de Sebastião da Rocha Pita – Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu Blog, o Blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: Instagram @dudasinke e e-mail esinkevisque@hotmail.com

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