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‘EU E O CIRCO LAMBARI’ / José Carlos de Oliveira

Conto-lhes essa história, que é minha história, por estar convencido que também é a história de muitas pessoas da minha geração. Na década de sessenta, morava eu com minha família numa agradável e bela cidade do interior deste imenso estado de Goiás, chamada Jataí.

A cidade tem esse nome por se situar em região onde vivem ou viviam grandes quantidades dessas abelhinhas. A palavra “jataí” é de origem indígena e vem da língua tupi “yata”. As jataís são abelhas pequeninas, sem ferrão e muito cobiçadas pelos apicultores. Produzem mel de excepcionais qualidades: fino, suave, levemente azedinho, características não verificáveis em outros méis.

Quem morou, naquela época, em cidades do interior do país bem sabe que o divertimento consistia no cinema da cidade e o circo. Ah, o circo! Quem teria inventado essa mágica? Meus olhos, agora mais ou menos opacos pelo colírio dos anos que todos nós somos obrigados usar brilham como estrelas quando ouço essa palavra mágica “Circo”! Ainda hoje é assim. O tempo é inexorável, destrói ou apaga nossas recordações, as boas e as ruins. Mas o circo, este está acima da intangibilidade do tempo. Que magia, que felicidade inocente transmite aos corações de quem pode assistir ao espetáculo. Que mundo é aquele onde não há nenhuma maldade, nenhum problema, nenhuma preocupação com o dia de amanhã?

Cada um de nós tem o seu fascínio, penso eu. Particularmente, o circo me fascinava, em verdade, ele fez com que o menino que existia dentro de mim não morresse já que até hoje, tantos anos passados, não fico menos maravilhado quando ouço essa palavra: Circo.

Fui, portanto, um menino pobre, pobre e feliz. Não poder contar, como de fato não podia, com recursos econômicos para realizar as minhas vontades nunca foi impedimento para que pudesse assistir a todos os espetáculos, de todos os circos que se instalavam na minha querida Jataí. Quando não tinha dinheiro suficiente para comprar o ingresso para o espetáculo (e geralmente não tinha) tomava logo a iniciativa de prestar pequenos serviços que terminavam por possibilitar ver o espetáculo. Um dos trabalhos mais dignos e prazerosos da minha vida: anunciar por toda a cidade que o circo chegou batendo latas e acompanhando o palhaço de perna de pau, fazendo coro com os demais meninos da minha idade, numa felicidade indescritível só existente no mundo lúdico do circo: Hoje tem goiabada? Ao que toda meninada respondia em uníssono frêmito – tem sim senhor! –

Hoje tem marmelada? – Tem sim senhor. Hoje tem espetáculo? – Tem sim senhor! E o palhaço o que é? – É ladrão de mulher! Pronto. Após toda cidade estar avisada da chegada do Circo pelo som do megafone de lata improvisado pelo engraçado palhaço, já tinha meu sonhado passaporte para o espetáculo, que não era carimbado e sim pintado na testa dos meninos que ajudaram na divulgação da presença do circo na cidade. Era meu passaporte, meu ingresso para realizar mais um sonho: assistir mais um espetáculo, todinho, com o coração em descompasso para saber qual a próxima atração. Seria as trapalhadas dos palhaços, o mistério simplesmente indecifrável das mágicas que aconteciam debaixo do meu nariz ou as arriscadíssimas manobras dos malabaristas? Meu coração parecia explodir pela espera. Era muita emoção de uma vez só para um menino da minha idade e apaixonado pelo circo…

Outras vezes conseguia o ingresso vendendo pipocas, pirulito, algodão doce, maria mole para o “respeitável público”. Nunca mais consegui um serviço assim. Pois, além de conseguir o dinheiro para o ingresso, fruto da comissão, ainda tinha direito de me deliciar com as sobras do estoque das guloseimas quando da prestação de contas…

Naquela época, houve um circo que se instalava em Jataí com muita frequência, criando mesmo uma identidade, uma certa afeição com o povo jataiense: meu querido e inesquecível CIRCO LAMBARI! Meu querido Circo Lambari, assim como eu, era modesto, muito simples, pobre mesmo, não apresentava números comuns e próprios de grandes espetáculos dos grandes circos, mas como eu era apaixonado por ele! Meu pobrezinho e divertido Circo Lambari!

Mas o Circo Lambari guardava um segredo, um segredo que os demais circos desconheciam e que, se conhecessem, ganhariam ainda muito mais projeção. Era um palhaço, o LAMBARI, ao mesmo tempo, o proprietário do circo. Uma figura singular o palhaço LAMBARI: calça amarela pouco abaixo dos joelhos, aquele jeito caipirão de andar, lembrando o consagrado Mazzaropi, ícone do cinema brasileiro, chapeuzinho velho e corroído na cabeça, dizendo piadas simples, inocentes, mas que se tornavam hilariantes contadas por ele.

Como eu me esforçava para assistir os espetáculos: vendendo guloseimas, anunciando o circo para a cidade, limpando o picadeiro após o espetáculo, dando banho nos animais. Qualquer sacrifício para assistir ao espetáculo valia a pena, e como valia. Essa afirmação não era minha, era do meu coração. Mas não era só o palhaço LAMBARI que tinha seus segredos, eu também tinha minha estratégia, meu segredo, meu plano (pouco ortodoxo) para quando todas as demais estratégias para assistir ao espetáculo falhassem: passar por debaixo da lona! Entrar clandestinamente. Diria alguém: que procedimento feio, reprovável, seus pais não lhe ensinaram bons modos moleque??

Ensinaram sim, e como… (que o diga o cinto do meu querido e saudoso pai!)

O que não me ensinaram era como transbordar meu espírito de alegria e contentamento com as atrações do Circo Lambari e as estripulias do palhaço LAMBARI. Onde estarão os meninos hoje, que partilhavam comigo de tamanha aventura de passar por debaixo da lona?

Estarão ainda vivos?

Se sim, será que se lembram da nossa vida naquela época ou constatando se venta na eternidade?

Essa, sem dúvida, foi uma parte inesquecível da minha rica e distante infância.

Muitos anos depois, já adulto, juiz de direito da comarca de Mozarlândia, interior do estado de Goiás, por volta do ano de 1987, já com toda essa realidade pintada num quadro pendurado na parede da memória, de todos os quadros, esse, o da saudade, é o que dói mais. Numa tarde, trabalhando em meu gabinete, no Fórum local, fui interrompido pelo porteiro dos auditórios, “Seu Bernardo”.

Meu Deus! Que grande verdade, já ouvi tantas pessoas dizerem “nesse mundo, até as pedras se encontram”. Não é que essa afirmação é uma grande verdade?

Disse o distante “Seu Bernardo”: Doutor, tem um homem aí fora querendo entrar para falar com o Senhor, acho que é o dono do circo que chegou aqui na cidade. Penso que ele deve estar querendo entregar ingressos para o Senhor e sua família, pois é comum isso com todos os circos que chegam aqui, logo providenciarem a entrega de cortesias para as autoridades da cidade, prefeito, juiz, promotor…

Mandei que entrasse, e eis que se posta em minha frente um senhor elegante, bem trajado, de fino trato a me dizer:

-Boa tarde doutor, eu sou o dono do circo, ora instalado nessa cidade, e vim trazer para o senhor e sua família ingressos de cortesia, a fim de que nos prestigie com suas presenças em nossos espetáculos.

Por falar em espetáculo, pensei, que espetacular presente, pois sempre fui apaixonado por circos. Enquanto falava eu o observava atentamente e lhe disse: Eu lhe conheço. Ao que ele respondeu espantado: Conhece?

E eu disse-lhe: O senhor não é o palhaço Lambari? Eu nunca tinha visto-o assim, descaracterizado.

E ele, perplexo, continuou: o senhor me conhece mesmo? Eu disse, demais.

Ele perguntou, de onde?

Disse-lhe, de Jataí, morei lá muitos anos. O senhor foi um dos maiores ídolos da minha infância. Até hoje lembro-me de suas piadas nos espetáculos, e fui repetindo a ele as piadas deu seu repertório, uma após a outra. Inclusive, contei a ele todos os trabalhos que consegui no seu circo para acessar aos espetáculos. E disse-lhe mais, quando todos os meus recursos falhavam, confesso-lhe: eu passava por debaixo da lona, desculpe-me por isso.

Com essa minha confissão ele se preocupou e disse: eu mandava que vigiassem mas instruía os vigias que não maltratasse nenhuma criança pega em “flagrante delito”. Eles o maltrataram em alguma dessas ocasiões?

Disse-lhe: de forma alguma.

Ele disse: graças a Deus! Não queria de forma alguma que isso acontecesse.

No decurso de nossa conversa relembrando aqueles tempos que não voltam mais, ele se emocionou e chorou, e eu também. Talvez tenha sido o choro mais sincero e feliz de toda minha vida. (Choro feliz? Acho ser possível, pelos menos nessas circunstâncias). Meu Deus! como a vida dá voltas…

Quando poderia me imaginar conversando com o palhaço LAMBARI em meu gabinete, já adulto e como juiz de direito, décadas depois…

Existe em Jataí hoje, uma praça com o nome de “Praça Lambari” em homenagem ao meu querido e pobrezinho circo de tantos anos passados.

No final de nossa conversa disse a ele: ontem mesmo passei em frente ao circo, e notei que o nome não é mais circo Lambari e sim “GRAN CIRCUS SPARTACUS”, por quê?

Respondeu-me:

As pessoas não valorizam coisas pequenas doutor, por mais maravilhosas que sejam. LAMBARI é o nome de um peixinho pequeno, vagabundo, comum em qualquer córrego. Não chama a atenção de ninguém, daí a necessidade da mudança do nome do circo, entende?

Entendo, meu querido palhaço, entendo. As coisas mais maravilhosas da nossa vida são tão pequeninas, tão insignificantes, não chamam a atenção de ninguém…

Tem toda a razão.

 

José Carlos de Oliveira (doutor José Carlos) é desembargador e membro da Comissão Permanente de Memória e Cultura do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO)

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