‘BONFIM, O PROFETA DO MATÃO’ / Dr. Ítalo Campos
‘As obras vão ocupando todo espaço da parede, sem reboco, da frente da casa, inclusive as duas janelas e, seguindo pela cerca, ocupando um segundo lote’.
Tem um não em todo sim, e as pessoas são muito variadas.
J.G.Rosa, in Noites do Sertão.
O sol começa a deitar sobre o canavial que me acompanha, por ambos os lados da estrada de terra, até lá. Vermelho-alaranjado o sol do cerrado refletindo em nuvens tocadas por leve brisa dá um tom mágico ao Planalto Central. Onde o poeta vê cor e imagina borboletas, o cientista nos avisa que o alaranjado é resultado do reflexo da luz em poeira e polens suspensos. Nem me importo com a explicação. Fico com a sensação forte e calorosa de que a natureza está se despedindo de mim para ir iluminar em outros reinos, entregando-me, e aos meus, a noite fresca do outono-inverno.
Estou quase chegando na Vila do Matão saindo do corredor de cana para um túnel de mangueiras, abacates, cajus e alguns frondosos pés de pequi entremeados por casas simples de alvenaria. Algumas com varandas, todas com dois ou três cachorros passeando, lado a lado com galos e galinhas preparando-se para alcançar os galhos das goiabeiras onde farão sua cama e repousarão da labuta pela sobrevivência. Equilibrando-se nos galhos ficariam protegidas de alguns de seus predadores. Em pouco mais de 200, 300 metros, alcançamos a praça.
Uma enorme área para o tamanho da Vila. No seu centro uma grande igreja, desproporcional em relação ao número de casas e, certamente de habitantes, em formato de um “T”. Na frente duas janelas em vitraux. Pintada de amarelo, com barreado em marrom. Uma alta torre central se destaca em contraste com o céu alaranjado. Na frente uma pequena praça, dentro da praça maior, recortada por retalhos em forma triangular, criando caminhos, delimitando um espaço preparado para o encontro comunitário nas oportunidades religiosas. Ou, nos encontros religiosos, criando oportunidades para convivência comunitária. Toda denominação religiosa pretende sempre aumentar e unificar o seu rebanho. A religião é uma das primeiras organizações sociais a criar formas de congregação através de recursos simbólicos como os mitos, os rituais, estabelecendo regras e formas comportamentais, maneira de se vestir, como também o uso de objetos identificatórios e de um livro, um manual, um roteiro, uma carta, com os princípios e bases do pensamento e da conduta deste grupo. Este livro concede ao crente um roteiro de vida, um apoio diante da angústia de viver, da insegurança diante do futuro, da imensidão, poder e da violência da natureza.
Contornando a praça, paralelo à igreja, encontro o espetáculo, o inusitado, a excêntrica galeria a céu aberto. A sensação é de atordoamento. As obras vão ocupando todo espaço da parede, sem reboco, da frente da casa, inclusive as duas janelas e, seguindo pela cerca, ocupando um segundo lote. Observando melhor, encontramos também os mesmos trabalhos colocados sobre o telhado. Aproximando da porta da casa, que, cortada ao meio, deixa ver o interior da pequena sala, lotada com obras similares.
São o que chamaríamos simplesmente de placas, se fossem e servissem apenas para informação ou sinalização, coisas feitas para efeito prático e utilitário, mas, não. É um trabalho artesanal cuidadoso, em diferentes suportes e diferentes materiais utilizados em diferentes formatos e dimensões sempre com a noção de reaproveitamento. São escritos bíblicos, frases da Escritura Sagrada habilmente desenhadas, com destaques à determinadas palavras ou expressões. As passagens bíblicas fazem referência, dá o crédito à autoria dos profetas com seus capítulos e versículos. Quem as lê pode se remeter e localizar diretamente nas Escrituras. Observa-se que grande parte dos textos são retirados de passagens do Apocalipse. Vê-se também, de forma curiosa, frases, expressões, retiradas não só do Velho, mas também do Novo Testamento. Talvez, sujeito a melhor observação, a ênfase esteja na escolha dos textos de condenação, de punição, indicando uma tendência para o trágico.
Bonfim é o seu nome. Seria coincidência a sua preferência pelo Apocalipse?
Goiano, de Porangatu, bem cedo saiu de casa à procura de melhor maneira de sobrevivência. Passou por Anápolis, Brasília, São Paulo, trabalhou como jardineiro, metalúrgico, funcionário dos Correios. Casou-se em São Paulo e retornou para Goiás temendo a violência dos centros urbanos. Teve quatro filhos. Em seu relato diz que sempre gostou de ler, citando os nomes dos maiores jornais do País e alguns autores nacionais, até que “descobriu” a Bíblia. Hoje, um senhor de meia idade, cabelos e barba mais longos do que o habitual na região, sua expressão verbal é articulada e envolvente. Convicta e convincente, fala como falavam os velhos profetas com expressões afirmativas e deterministas. Enquanto fala, seu corpo, seus gestos, também comunicam com expressões no rosto, utilizando-se de diferentes tonalidades na emissão das palavras visando acordar o interlocutor. Acordar é mesmo o termo adequado no sentido de despertar e fazer um acordo, uma cumplicidade, uma adesão. Bonfim tem o dom da oratória e a convicção de um crente.
Ele pode fazer companhia a personagens como Antonio Bispo do Rosário e Gentileza (José Datrino), pessoas não enquadráveis que se situam entre o artista e o profeta, entre o fanático e o libertário nos apresentando em seus trabalhos e expressões a face mais humana do ser humano. A dor e a delícia de existir. A arte e o artesanato como formas estruturantes e compensadoras do caos inicial da nossa constituição psíquica.
Lá no Matão, hoje Geriaçu, distrito de Uruaçu, Goiás, no Brasil profundo, reside e vive Bonfim Bispo de Souza, um visionário simpático e acolhedor que, em sua arte-artesanato, marca no espaço e no tempo, a sua crença e sua experiência com a vida.
Ainda sob forte impressão pego o caminho de volta, após completar a curva da praça entro no caminho de entrada, com suas árvores e pássaros pousando para suas noites merecidas. Em mim uma certa estranheza que Guimarães Rosa, como sempre, me socorre e conforta: A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. Ninguém é doido. Ou, então, todos.
Dr. Ítalo Campos, natural de Uruaçu e residente em Vitória-ES., é, dentre outras qualificações, psicanalista; psicólogo; escritor; poeta; membro da Academia Espírito-santense de Letras (AEL), da Academia Uruaçuense de Letras (AUL) e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES). E, tem os Títulos de Cidadão Espírito-santense e de Cidadão Vitoriense; e, recebeu a Comenda Rubem Braga, da Assembleia Legislativa do Espírito Santo
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2 Comentários
Um excelente registro de um personagem que, agora, mais inolvidável ficará. Um tipo realmente rosiano, encerra com chave de ouro toda a literária narrativa. Parabéns, Ítalo Campos!
Parabéns, nobre confrade!
Excelente relato e muito oportunas citações do “mago da palavra”, Guimarães Rosa.
Fiquei curiosa. Gostaria de conhecer o local e a figura enigmática do personagem.
Grande abraço!