Francisco J.S.A. Luís nasceu em Lisboa em 1971. Foi investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, é doutorado em Antropologia Social e Cultural; e, mestre em Direito Administrativo e Administração Pública. Trabalho de dez anos que finalmente cumpre o seu propósito, o de dar voz a quem não a tem, Travestis Brasileiras em Portugal foi certamente o seu primeiro grande exercício antropológico de integração conceitual e humana do “outro” diferente.
“Primeiramente pretendo destituir as travestis brasileiras da conotação quase que onipresente com a marginalidade. Como todos os migrantes que cruzam geografias, pretendem alcançar novos projetos de cidadania, segurança e mobilidade social ascendente”, salienta.
Leia entrevista feita com o autor para a revista Divulga Escritor, pela ativista cultural Shirley M. Cavalcante, administradora (e, jornalista, radialista, …) do projeto Divulga Escritor.
O que o motivou a escrever Travestis Brasileiras em Portugal?
Travestis Brasileiras em Portugal; Trans-migrações e indústria do sexo transnacional surge na sequência da minha tese de doutorado em Antropologia social e cultural. A ideia emerge da vontade de comunicar a experiência e os conhecimentos adquiridos nesta viagem a uma realidade que me era totalmente estranha. Na verdade, para fazer uma tese de doutorado, teria que me confrontar verdadeiramente com o outro antropológico e empreender a tarefa de desvendar essa alteridade, sob muitos aspetos objeto duma dinâmica socio-antropológica de invisibilização. No fim do dia, é esse confronto com a alteridade que aparentemente se opõe à nossa realidade, bem como as dificuldades que emergem desse processo, que estão na base de muitos dos conflitos e dilemas sociais/humanos a que profusamente assistimos nos nossos quotidianos. O contato com a instabilidade, mutabilidade e fluidez das travestis brasileiras surge naturalmente como um exercício de redefinição de fronteiras e dogmas.
Que temáticas estão sendo abordadas nesta obra literária? Apresente-nos alguns tópicos do Sumário.
Estabelecemos como base para a estruturação desta obra, a analogia entre as migrações geográficas e as migrações de gênero/sexo. Para tal dissecamos as migrações de gênero das travestis brasileiras em contexto de prostituição e os seus projetos migratórios para Portugal e Europa. A partir desta matriz, desenvolvemos um enquadramento destes fluxos e mobilidades, naquilo que consideramos ser um processo que potência a tal ideia de confronto construtivo com o outro. Nunca como hoje, as pessoas viajam, a informação circula e as sociedades se transformam com uma intensidade não compatível com estruturas sociais mais estáveis, assentes na tradição e na reprodução acrítica de modelos sócio-normativos. Hoje como nunca, as identidades estão repartidas e a noção de raiz identitária original se encontra sob forte escurtínio da reflexividade crítica dos sujeitos, outrora, incentivados a não se desenvolverem na sua especificidade identitária. Tal, coloca novos desafios aos Estados-Nação e aos próprios atores sociais que o revitalizam por ação duma crítica transformadora do contrato social que os sustenta. Hoje, como nunca, o sistema mundo se tornou polissêmico e instável. Um dos exemplos dessa transitividade questionadora, reside quanto a mim, na capacidade revelada pelas travestis brasileiras em se reinventarem identitariamente e se projetarem para fora das fronteiras brasileiras, revelando com todo o esplendor a sua capacidade de integração num sistema mundo, relativamente ao qual parecem pulular nas suas margens. Demonstrando, portanto, como um produto da cultura brasileira se auto recria e estrategicamente se desenvolve fora dessas fronteiras. Como todos os migrantes, apenas desejam alcançar projetos de cidadania/dignidade plena e mobilidade social ascendente.
Quais os principais desafios para construção do enredo que compõe o livro?
Primeiramente, o fato de utilizar recorrentemente a expressão “travestis brasileiras” resulta daquilo que considero ser uma especificidade identitária e cultural não constatável noutras geografias e não da colagem de algo negativo a uma nacionalidade. Como exemplo, posso referir a aplicação de silicone industrial entre a pele, a carne dos sujeitos travestis, a que inclusivamente assisti em Portugal. Pois bem, as maiores dificuldades residiram em conseguir aceder à rede social travesti em Portugal. Duplamente fragilizadas em termos de cidadania, quer enquanto transgêneros, quer como migrantes maioritariamente indocumentadas e trabalhadoras do sexo. Mesmo um trabalho acadêmico exige uma estrutura ou, se quisermos, um enredo. Não foi fácil, pois este universo de estudo revela-se uma fonte de múltiplas matérias de interesse relevante a vários níveis. A seleção desses campos sócio-antropológicos, revelou-se, portanto, um segundo obstáculo a ultrapassar.
Quais os principais desafios para escrita desta obra literária?
O grande desafio a que me propus foi a realização de um trabalho acadêmico que pudesse ser lido e interpretado por não-especialistas. Manter o interesse na leitura exige ritmo e fluidez semântica. Para tal, tentei conciliar uma perspectiva explicativa e descritiva dos fatos, com uma narrativa dinâmica centrada nas vidas e dificuldades experienciadas por estas pessoas. Esta abordagem parece-me interessante, pois cruza as viagens interiores do eu, com os fluxos migratórios característicos dos séculos XX e XXI, procurando demonstrar como umas, são indissociáveis das outras, mantendo entre si uma rede de vastas cumplicidades.
Quais os principais objetivos a serem alcançados por meio da leitura do livro?
Primeiramente pretendo destituir as travestis brasileiras da conotação quase que onipresente com a marginalidade. Como todos os migrantes que cruzam geografias, pretendem alcançar novos projetos de cidadania, segurança e mobilidade social ascendente. Demonstrar também, como o seu papel e poder aquisitivo no exterior, se convertem em novos capitais sociais no Brasil, pois passam a ajudar as famílias como a maioria dos migrantes faz. Exemplos desse empowerment [empoderamento] decorrem da sua capacidade em fazer investimentos na terra de origem e como consequência, a sua contribuição para a revitalização da economia brasileira regional, inclusivamente com reflexos na redução da taxa de desemprego. Ou seja, o projeto migratório pode alterar o estatuto das travestis na sociedade brasileira. Na maioria das vezes, essa mudança começa pela família que anteriormente havia cortado laços com eles, sendo as relações reativadas inicialmente por intermédio das remessas enviadas, que a um certo nível se substituem à coabitação como elemento de congregação de afetividades.
Apresente-nos a obra.
Pois bem! O século XXI acentuou a celeridade dos processos globalizantes e a densificação de tecidos urbanos repletos de contrastes. O mundo já não é a preto e branco e o anonimato trouxe consigo a cor sob a forma de diferença, que, enquanto experiência vivida, se tornou comunitariamente possível na cidade. Quebra-se na prática a unidirecionalidade entre sexo e gênero ou entre sexo e sexualidade, enfrentando-se esquemas de pensamento enraizados. O paradigma máximo desta autonomia sistêmica alcança-se na construção de uma identidade travesti mutante, mutável e instável que acompanha um mundo profusamente povoado por fluxos intensos e interdependências várias. É na sociedade global que as travestis encontram espaço para a vivência transnacional e comunitária das viagens trans. Brasil, Europa, cidade, prostituição e migração surgem como fatores chave para a sua disseminação geográfica e identitária. A rua tornou-se a sua nova casa e as outras travestis são agora a sua família.
Soube que o evento de lançamento será em setembro. Qual o dia, hora e local?
Sim. O evento irá ocorrer no clube literário do café Chiado, em Alcântara, Lisboa [Portugal]. Estaremos disponíveis para receber quem quiser estar presente, às 14h30, na rua de Cascais, nº 57.
Quem não puder ir ao lançamento do seu livro onde poderá adquiri-lo?
O livro poderá ser adquirido… [https://www.chiadobooks.com/livraria/travestis-brasileiras-em-portugal-percursos-identidades-e-ambiguidades]. Caso subsistam dúvidas podem sempre contatar a Chiado Editora no Brasil ou as livrarias que comercializarão a obra. Estes contatos poderão ser consultados… [https://www.chiadobooks.com/distribuicao].
Quais os seus principais objetivos como escritor. Pensa em publicar novos livros?
Neste momento estou a trabalhar em duas áreas distintas, uma delas tem a ver com as migrações asiáticas para Portugal, nomeadamente de Bangladeshianos, Indianos e Paquistaneses. Paralelamente, estou a preparar a minha tese em Direito Administrativo e Administração Pública, com o enfoque direcionado às Fundações de Direito Público. Por agora, ainda não penso em novas publicações.
Agradecemos sua participação. Que mensagem deixa para nossos leitores?
Ler é fundamental, ler permite-nos viajar, quando às vezes não há condições materiais para o fazer. Leiam este trabalho que pretende integrar a migração das travestis na restante migração brasileira para Portugal e dar-vos notícia de como se processam as vidas dos vossos concidadãos em Portugal. Viajarão num duplo sentido, pelas vidas daqueles que emigraram e daqueles que no Brasil se encontram na base inferior da pirâmide social, mas que, ainda assim teimam em sonhar com dias melhores. Conhecer é essencial para compreender e a compreensão ocupa um papel cada vez mais fulcral neste mundo, que juntos construímos e do qual deixaremos um legado, melhor ou pior, aos nossos filhos.
(Informações [transcrição], sob adaptações: fonte citada na abertura)