PAINEL CULTURAL

DR. ABILIO WOLNEY AIRES NETO

Sobre ‘André Louco’, de Bernardo Élis

Certo menino de 12 anos de idade protagoniza um doente mental na obra André Louco, do escritor Bernardo Élis, novela que se desenvolve tendo como palco a urbe de Corumbá de Goiás, ao que se deduz, no dealbar do Século XX.

Como escreve Anne Caroline Fernandes Alves,

A narrativa começa com a descrição de uma cena noturna onde a criança percebe a movimentação dentro de sua casa e os latidos de cães na rua, o barulho de correntes se arrastando e vê sua mãe ajoelhada, acendendo vela e rezando com a criada que lhes serve em função de toda uma agitação. O pai está espiando pela brecha da janela e ele logo conclui: André Louco vem aí.

Nos capítulos que se seguem o narrador explica que André Louco era um jovem que bastante incomodava a cidade, um endiabrado. Tudo começa com uma cena onde a personagem principal, André, violentamente ataca pessoas e finaliza com um tiro nos peitos da negra Angelina.

Sua punição: o delegado pede à família que o recolha em seu sítio e que não o deixe perturbar mais a cidade. Tempos depois, o mesmo André se encontrava na roça com seus irmãos e surta de maneira tal que sobe num carro de boi e some no mundo a espetar o pobre animal que movia o carro.

A partir de então, uma série de eventos de violência, dos quais não se encontram culpados a priori, são atribuídos ao louco que fugiu. Todos passam a ter preocupações a respeito desta figura e dentro do texto percebemos um imaginário carregado de princípios religiosos e até mesmo sociais que giram em torno da loucura.

Esse imaginário fica atestado quando Élis escolhe uma criança para dar voz ao acontecimento. Portanto, o leitor fica envolto na narrativa que está sendo construída por um menino que desfruta da imaginação que lhe é característica e ainda do início de percepção da vida que lhe começa a ser realidade. [1]

A obra de Élis, como esta novela, exsurge em regra por oportunizar voz aos silenciados, pois “seus personagens costumam ser mais do que simples caricaturas, dando ao texto o caráter universal das mais complexas relações humanas em suas misérias e suas experiências de vida. Ainda que ficção, a obra deste autor goiano nos ensina a empregar artifícios narratológicos que expressem com mais clareza as relações de representação das quais pretendemos utilizar enquanto historiadores”. [2]

O livro ganhou película “concebendo a arte literária e a arte cinematográfica como expressão humana e espelho do ser social e político, como escrevem João Vitor de Souza-Ramos, Ewerton de Freitas Ignácio e Maria Eugênia Curado [3] ao analisarem o trabalho sob a ótica de Rosa Berardo em sua produção para o cinema:

Com uma narrativa permeada pela realidade humana e social, tendo como palco o Brasil Central, Ermos e Gerais marca, em 1944, a estreia de Bernardo Élis – livro composto por dezenove contos e a novela André Louco (1978). 2 Situada em um contexto de agitações e conflitos, a obra estrutura-se em um interregno marcado por lutas entre o velho e o novo, construindo um registro da cultura e identidade rural que engatinhava em seu processo de urbanização.

Élis assume a forma do conto e rompe com a tradição nordestina do romance de 1930, produzindo uma obra estranha e original (TELES 2003: 9) que se utiliza do grotesco como expressão da mudança histórica. Demonstrando consciência das nuances e do caráter estrutural da violência, o autor dá voz àqueles que foram preteridos e apagados pela história, denunciando as oligarquias e desmandos do coronelismo que relegaram uma realidade ‘semifeudal’ a esses sujeitos esquecidos, abandonados aos ermos e gerais.

Inserida nesse quadro, André Louco é uma novela literária de 47 páginas, com traços regionalistas, que explora o imaginário popular a partir: 1) Ressalta-se que a expressão dos conflitos miméticos é determinada historicamente, sendo condicionada pelo modo de produção e reprodução da vida material e pelas contradições sociais que dela decorrem. 2) Bernardo Élis reagrupou os contos de Ermos e Gerais (1944) e Caminhos e Descaminhos (1965) em dois volumes, respeitando o ‘espaço ficcional’. O primeiro, publicado em 1975, sob o título de Caminhos dos Gerais; e, o segundo, contendo a novela que deu nome ao livro, intitulado André Louco – edição utilizada no artigo.

[…] Por trás de cada conto está a estrutura de […] um causo, quando não de uma lenda ou de um mito. […] E é esse sentido de oralidade que determina a ressonância linguística do coloquialismo que marca as falas do narrador e das personagens, já que o espaço entre as duas estâncias se vê praticamente eliminado (TELES 2003: 14). [4]

[…] O pai do narrador, João Ferreira, conversa com o médico alemão sobre a Grande Guerra. Fala sobre o comunismo. E em outro momento, relata-se o uso de réis como unidade monetária, posteriormente substituída pelo cruzeiro, em 1942: “Meu pai não pediu diferença, pagou cinco contos de réis e saiu falando para todo o mundo que pagou somente 200$000 (ÉLIS 1978: 18)”.

A construção narrativa apresenta digressões com cortes de cenas que se assemelham a takes cinematográficos. O autor estimula nossos sentidos por meio da palavra, trabalhando nosso imaginário ao conceber imagens que se formulam pela oralidade.

Ela costurava, a cabeça inclinada, sua sombra [4] vacilante projetada disforme na parede, no teto sem forro, e conversava sobre André Louco: que ele matava todo mundo; que ele fizera bramura; que ele ia fugir e estrangular habitante por habitante da cidade (ÉLIS 1978: 3). Essas marcas de oralidade, que variam entre as personagens, estão presentes na película.

O uso de sombras, como recurso estético, é uma característica importante na composição da iconografia da tradução cinematográfica de Rosa Berardo – ver figura 1 [Nota da Redação: não consta figura]. 297 TradTerm, São Paulo, v. 38, fevereiro/2021, p. 291-314, Número Especial –, III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm [7], grifo nosso. Assim, a trama se desenvolve pelo ponto de vista do narrador personagem, compondo um relato de caso calcado nas memórias da infância. Essa ótica dita o foco narrativo da novela, que se fixa na dinâmica entre os moradores da comunidade, com destaque para João Ferreira, estabelecendo uma relação periférica da personagem André que permeia a sociedade reverberada pelos ruídos e ecos do imaginário coletivo. Essa perspectiva nos mostra como João direciona seus ressentimentos e recalques para André, apontando-o como o culpado por tudo o que lhe aflige e buscando disseminar essa ideia para expulsar o Louco do Município. Essas informações são importantes para contextualizar a análise dos estereótipos persecutórios e o modo como a trama nos é apresentada.

Desse modo, João vivia agastado, até eleger sua vítima expiatória: por fim, atinou com a causa primária de toda aquela complicação psicológica em que vivia nos últimos tempos – André Louco. Não existisse ele, não haveria espancamento de Pedro, não haveria a sua mendicidade de favores aos jurados, não haveria sua humilhação ante o coronel. Para desabafar, virou-se contra o louco, que passou a bode expiatório. – Essa cidade é um suplício, ninguém tem descanso. [5]

A noite inteira é berreiro de doido. Em toda a parte procuram diminuir o ruído. Aqui existe um cuidado meticuloso em aumentá-lo (ÉLIS 1978: 23). A partir desse momento, João começa a advogar contra o Louco: “Esse endemoniado, qualquer dia, sai pela rua e será muito bom se não matar alguém (ÉLIS 1978: 23)”.

Logo em seguida: um dia, quando o filho do Valentim foi jogar o pacote de ‘comê’ para o demente, ele deu aquele urro, balançou as grades. O menino confiava nela; já estava habituado com a cena: – Bamo vê, André véiu! Força! E não é que a grade cedeu mesmo? O menino correu. Era tarde, porém. – André Louco fugiu (ÉLIS 1978: 28-29)!

A comunidade se reúne na casa de João para escutar a história, e é nesse momento que ele consegue a atenção desejada; apontando André como o causador de todos os males do lugar.

Dessa narrativa, as pessoas não se revoltam contra André, mesmo após a morte do filho do Valentim: “Se não fosse o louco não teríamos hoje este prosão animado, – continuava chistoso o dentista (ÉLIS 1978: 37)”.

O ápice da crise que tira a diferença, no entanto, ocorre quando alguém grita o nome de ‘André Louco’ na porta da igreja. Os moradores entram em pânico ao pensar que o louco tinha escapado novamente. Assim, esse mal-entendido começa a gerar inúmeros conflitos entre os habitantes, até chegar a notícia de que a mulher do escrivão sofreu um aborto ao fugir da igreja: “Foi aí que a revolução de meu pai encontrou clima propício. – Bem que o Senhor disse, Seu João. É preciso mandar esse tranca embora. Veja quanta discórdia, quanta coisa ridícula” (ÉLIS 1978: 46). [6]

O crime indiferenciador, segundo estereótipo, não precisa efetivamente ter sido cometido pelo bode expiatório, visto que ele tem valor simbólico. O foco é atribuir a André a culpa por toda a crise mimética. Assim, há um apontamento genérico: André é a origem de todos os problemas; é o responsável pelo aborto.

Mas, no âmbito pessoal, cada um atribui um crime específico: João culpa André por tudo o que lhe acontecera com o alemão, Pedro e o coronel Bentinho. Para Joana, “André Louco estava possuído do capeta (ÉLIS 1978: 38)”. Quanto às marcas vitimárias, Girard (2004: 26-27) aponta que a multidão tende a canalizar sua violência às minorias, atribuindo-lhes a culpa pela crise mimética.

Assim, os traços culturais, religiosos e físicos, como a loucura e deformações, tendem a polarizar os perseguidores. Pois são traços que diferenciam o bode expiatório da multidão escandalizada.

Por fim, temos o último estereótipo: a violência ou expulsão coletiva. André Louco sofre ambos. Sendo expulso da comunidade e posteriormente morto no sítio de sua família.

[…] Nesse sentido, o crime indiferenciador é imputado a um bode expiatório a fim de diferenciar a multidão do culpado, unificando o coletivo pelo ódio e violência à vítima expiatória.

Percebe-se, aqui, um exemplo de como a determinação histórica condiciona o mecanismo mimético: a morte do filho do Valentim não causou indignação nos habitantes, mas o aborto sofrido pela mulher do escrivão, que possui status social, sim – mesmo que André não tenha sido o responsável pela confusão.

[…] O bode expiatório é um membro do grupo, mas deixa de sê-lo na hora em que é assinalado como culpado da desordem. Converte-se assim numa espécie de elemento externo, favorecendo o retorno da coesão do grupo, que volta a reconhecer-se como unidade, em oposição ao futuro bode expiatório, figura mesma da alteridade que se havia perdido na crise da indiferenciação.

Atentando-se ao sincretismo semiótico e as demandas do formato empregado, Berardo realizou um recorte. O mecanismo do bode expiatório, ou mecanismo vitimário, “permite que uma comunidade em crise recupere ou preserve seu equilíbrio. Isso é eficaz apenas se a comunidade conseguir dissimular para si mesma a verdadeira natureza do que está fazendo” (KIRWAN 2015: 127), cessando a escalada epidêmica da violência ao transformar a luta de todos contra todos em todos contra um, resguardando a coesão do tecido social. [7]

Desse modo, há uma redução da narrativa acrescida de duas cenas inéditas/originais, estabelecendo um plano simbólico sensível ao audiovisual. Esse procedimento corresponde a base da transcriação aplicada por Berardo, pois na tradução intersemiótica o que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, buscando iluminar suas relações estruturais, pois são essas relações que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimentos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo, inteligir estruturas que visam à transformação de formas (PLAZA 2003: 71). [8]

Assim, Berardo reafirma as figuras do texto de Élis, acrescentando novos elementos ao (re) interpretá-los e dar-lhes nova forma, manifestando uma “consciência tradutora capaz de perscrutar não apenas os meandros da natureza do novo suporte, seu potencial e limites, mas, a partir disso, dar o salto qualitativo, isto é, passar da mera reprodução para a produção (PLAZA 2003: 109)”. Na prática, podemos observar esse procedimento logo nos primeiros segundos da película. Replicando a cena inicial da novela, há sons de latidos e o tilintar de correntes, recurso objetivo retirado do texto bernardiano: ouvi um barulho de corrente se arrastando nas pedras das calçadas, lá fora. A cachorrada latia desesperadamente pela cidade inteira. Os do largo do cemitério latiam e os da rua de baixo respondiam (ÉLIS 1978: 3). Berardo complementa a cena com o uso de música instrumental não diegética, que auxilia na construção lúgubre e dramática do clima, introduzindo a personagem André Louco de forma indireta, por meio de sombras distorcidas (figura 1) [Nota da Redação: não consta figura]; tal como uma assombração entrando na cidade. Observa-se, nas figuras 1 e 2 [Nota da Redação: não constam figuras], a aplicação do contraste de luz e sombras como recurso estético, marcando a mise-en-scène noturna. 301 TradTerm, São Paulo, v.38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm Figura 1: Projeção da sombra de André Louco Fonte: André Louco (1990: 01:50/16:30) Figura 2: Contraste de luz e sombra. Fonte: André Louco (1990: 01:23/16:30). [9] [Nota da Redação: não constam figuras]

O uso de sombras distorcidas, ou em contraste, é pinçado do texto literário, adquirindo uma nova configuração e intencionalidade na película, estando presente em algumas passagens: [10]

À claridade vermelha e vacilante da fornalha, sua sombra disforme projetava-se na parede enfumaçada e no teto enegrecido, mais impressionante, mais exótico, mais desproporcional. No nosso quarto, de noite, Joana costurava, augurando desgraças. A sombra dela escorria pelo soalho, dobrava-se na parede, tornava a dobrar-se no teto, onde havia estalidos estranhos (ÉLIS 1978: 49, grifos nossos).

Na composição da tradução, por meio do contraste de luz e sombras, Berardo cria um efeito estético que ambienta a diegese, transmitindo uma percepção de ‘atraso e de trevas’ de um Município rural, sem luz elétrica; compondo uma dualidade entre dia/segurança e noite/terror: de noite, assombrava a cidade com os urros. No silêncio de desespero da cidade desfalecida de atraso e de trevas, o grito rouco de André acordava assombrações e pesadelos (ÉLIS 1978: 5). [11]

Ao sintetizar esses elementos, a cineasta ressignifica a cena, passando da reprodução à construção de um novo original. Quanto à estrutura narrativa, observa-se que a perspectiva foi modificada devido à retirada do narrador-personagem, alterando a forma como a trama nos é apresentada: [12]

Portanto, não há uso predominante de voz over, recorrendo-se a ela uma única vez como recurso para desenvolver um flashback de André. Assim, os personagens João, Antão e o sacristão assumem, brevemente, o papel de narrador, mantendo uma coesão narrativa entre os cortes. O texto literário aborda vários acontecimentos do passado de André, nem sempre confiáveis. Desse modo, Berardo decide contar apenas um desses casos, utilizando-se de um trecho literal da novela [11], substituindo a voz do narrador-personagem por um diálogo, em voz-over, entre as três personagens citadas acima. Em seguida, há uma cena inédita na qual André faz um discurso em um curral, cercado por vacas. Usamos o termo voz-over de acordo com Xavier (2003: 68).

“André, desde mocinho, tinha um gênio insuportável […]. Deu no delegado, nos ‘bate-paus’, saiu pelas ruas dando tiros nas paredes. Todo mundo fechou as portas (ÉLIS 1978: 4)”. [13]

Essa cena, elaborada e criada exclusivamente para o curta-metragem, apresenta o momento exato em que André enlouquece, sendo preso por querer “distribuir o [gado] que não tem”, como afirma o delegado. Ensandecido, André produz um discurso aparentemente sem nexo, mas que remete à denúncia do coronelismo e exploração do trabalho. Há uma construção simbólica por trás da decupagem e ações da personagem. Enquanto discursa, André começa a se despir, arremessando o chapéu pelos ares. [14]

Aqui, as roupas representam as amarras e laços sociais, os acordos tácitos entre os indivíduos, a sanidade e racionalidade que nos permite viver em sociedade. Há um rompimento claro da personagem com o tecido da malha social, o diruir psicológico que abraça a loucura, tornando-se um sujeito imprevisível e de difícil convívio. E, por isso mesmo, incômodo. Assim, André Louco incomoda, mas produz fascínio: “Precisamos do louco, seu João. Precisamos muito dele. Sem o louco, ninguém aguenta a insipidez da cidade (ÉLIS 1978: 37)”. [15]

Assim, Berardo segue um padrão ao pinçar trechos da novela, mesclando-as para produzir novos significados. Ao transpor os diálogos do texto, a cineasta mantém as marcas de oralidade, transmitindo o pensamento, nível de escolaridade e visão de mundo pessoal de cada personagem. [16]

Seja o religioso, científico ou mítico. Próximo ao desfecho que leva a expulsão de André, Berardo ressignifica o diálogo entre o filho de João e a empregada Joana (figura 6)  [Nota da Redação: não consta figura], construindo um novo significado ao unir a passagem: “Joana começou a soprar o ferro, na janela, para avivar as brasas, e voltou a conversa” (ÉLIS 1978: 23), ao diálogo: a – Joana, se ele fugir, acha que ele vem aqui em casa? – Ele quem? André Louco? – É. – Ora, se ‘évem’! Évem, mas é feito cobra mandada. Seu pai ‘mandô botá’ ele no pote (ÉLIS 1978: 7). Essa combinação nos antecipa que algo está para acontecer. Desse modo, após o diálogo, o filho de João pula a janela para seguir o menino que levava o almoço aos presidiários, incluindo André. Nesse momento, Joana encara o horizonte, torpe, como se pressentisse algo, um presságio; queimando a roupa com o ferro de passar [17] (TradTerm, São Paulo, v. 38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm. Fonte: André Louco [1990: 05:16/16:30]).

Se a novela desenvolve pequenas tramas para mostrar como João (e a comunidade) concebe o louco como um bode expiatório, na película, Berardo não se propõe a construir essa dinâmica; direcionando a câmera para André e sua jornada. Todavia, utilizando-se de um dos conflitos de Antão, a cineasta sintetiza o modo como direcionamos nossos ressentimentos em forma de violência. [18]

Expondo, assim, que todos nós temos nossos bodes expiatórios. Enquanto Antão se escondia na igreja, verificando se o louco não estava por perto, Sá Maria o chama, assustando-o. Ressentido por perder a pose de valente, ele canaliza e transforma esse sentimento em violência contra André Louco. Desse modo, Berardo recorta um fato da novela e o transforma, criando outra cena original (figura 10) [Nota da Redação: não consta figura]. Após fugir da prisão, a comunidade expulsa André, e é Antão que o leva para fora da cidade. Ao atravessarem um rio, Antão afoga o louco, gargalhando e repetindo: “Quem é que tem medo de louco?”.

Ressalta-se que há uma ruptura narrativa, quebrando a coesão, pois em nenhum momento temos informação sobre o lugar e as pessoas que ali estão, ou qual a conexão delas com André Louco. Essa lacuna propicia certa confusão caso o receptor não tenha lido a novela a priori. Situação que se agrava após a chegada da comitiva; visto que André é içado na cozinha, preso a um colete de couro, dando início a um processo de tortura movido pela ignorância.

Maltratado e com os ferimentos expostos às moscas, um dos homens conclui que André está ‘entupido de demônio’. Juntos, jogam creolina nas feridas do louco. Urrando de dor e içado pelo colete de couro, André se debate em “polichinelos diabólicos”, até cessar:

“–As bichera tá tudo morta – exclamou o baiano. E com elas, André. Santo André Louco, mártir, orai por ele (ÉLIS 1978: 49)”. […] Apesar de apresentar dois estereótipos imediatos (as marcas vitimárias e a violência/expulsão coletiva), Berardo utiliza-se de outro foco narrativo ao realizar a transmutação, negligenciando a construção da crise da indiferenciação. Portanto, a câmera se direciona para a personagem André em detrimento das interações sociais da comunidade, buscando a catarse na exposição da fragilidade humana. Nesse aspecto, Rosa Berardo se recusa a transpor uma realidade maniqueísta redutora, desenvolvendo uma percepção para além do bem e do mal; expondo a banalidade da violência social, a qual todos compartilhamos em algum grau – seja por dinâmicas miméticas situacionais ou pela reprodução da violência intrínseca às estruturas de poder, condicionadas pelo modo de produção da vida material. [19]

Enfim, quanto ao terceiro estereótipo, pode-se argumentar que a morte do filho do Valentim se enquadra. Mas a película não visa se aprofundar nesse debate. Assim, há uma crise, um crime, uma indicação de conflito social e intui-se que André é o culpado por tudo. [20]

A função do texto seria a que nos aponta Hartog (1999 ) [21] ao dizer que este é “reflexo da sociedade e das lutas que a animam”, como a mais destaca mais Anne Caroline.

Fernandes Alves:

Para além da Literatura, o texto de Élis nos leva a encontrar uma realidade social de um estado atrasado e mergulhado num imaginário que ainda hoje se percebe. Assim, por meio da literatura, o autor também implica elementos históricos em sua narrativa. [22]

Muito se discute ainda hoje sobre o tema da loucura. Para além do diagnóstico, a loucura pode ser vista por muitos como uma situação de possessão demoníaca e desta perspectiva trabalha todo um imaginário religioso e espiritual. A questão do imaginário possui uma representação carregada de afetividade e de emoções criadoras e poéticas (LAPLANTINE, 2003). [23]

Esta carga afetiva pode ser observada em toda a narrativa de André Louco, no trato dos moradores da cidade com a personagem principal. Suas atitudes estão sempre pautadas no imaginário que possuem a despeito do louco e isso é ingrediente da construção desta personagem. A primeira menção ao louco, no texto, é feita nas primeiras linhas. O barulho das correntes antecede a chegada de seu detentor. Nestas primeiras palavras, a imagem de um ser assombroso começa a ser delineada. A mãe do menino o chama para ajoelhar-se em oração, pois o louco está às ruas. Perceber a loucura a partir da narrativa de uma criança é algo que nos chama a atenção, como bem diz Marchezan (2005) em introdução à edição de Ermos e Gerais. Essa novela, como mistério e a mesma cenografia presente nos contos, por meio de uma focalização, surpreende, centrada num menino, enovela tensões diferentes, múltiplas, que se desdobram e devassam algumas almas dos ermos geralistas do universo ficcional de Élis.

Ao observamos a construção da personagem, devemos levar em conta todos os recursos que Élis faz uso em sua produção como a descrição do espaço, a linguagem típica do sertão goiano e a caracterização abundantemente descrita das personagens. É bom lembrar que as histórias atuam “…Antes de tudo, no destinatário: é para ele que o efeito é calculado pelo narrador ou, globalmente, é nele que o texto deve fazer efeito”, deste modo, podemos pensar que cada representação nessa novela possui um efeito intencional do narrador, ao mesmo tempo que causa identificação no leitor que experiencia ou ouviu falar das experiencias aqui contidas (ÉLIS, 1978). [24]

Esse personagem, André, possui antes de tudo, uma anunciação ao leitor, digna de alma penada. Sua entrada é precedida pelo latido de cães, pelo estalar de correntes arrastando em pedras e burburinhos de rezas [25]:

Um indício de imaginário da loucura ligado desde já à “coisa doutro mundo”, “alma condenada”. Além disso, as primeiras características do local onde está percebida a narrativa vem à tona pelas pedras que pavimentam a rua, pelas palhas utilizadas para queimar a vela como se vê no trecho a seguir: “Devia ser muito tarde, meu pai olhava pela greta da janela semicerrada. Minha mãe, ajoelhada na alcova, queimava palha benta numa vela igualmente benta, como nos dias de chuva braba”. Além de descrever o espaço, há também uma clara anunciação do trato religioso que domina o imaginário nessas primeiras linhas da novela. Mais adiante lemos o trecho: “Daí a pouco ouvi um barulho de corrente se arrastando nas pedras da calçada, lá fora. A cachorrada latia desesperadamente pela cidade inteira. Os do largo do cemitério latiam e os da rua de baixo respondiam (ÉLIS, 1978)”. [26]

[…] Ouve-se de geração em geração, dos moradores de Goiás, que essas figuras de loucos vagavam pela cidade de Goiás em grande número e que alguns deles até eram de famílias abastadas da cidade, entretanto, por motivo de loucura eram renegadas pelas famílias. Pessoas que habitaram a antiga capital do Estado afirmam que o barulho das correntes, narrado em nossa novela, eram comuns pelo fato de que alguns loucos fugiam de suas casas e saiam arrastando as correntes usadas para prendê-los em suas casas. Seguindo adiante, o narrador explica que a personagem, desde moço já era endiabrado, beberrão e agressivo (ÉLIS, 1978, p. 4).

Em seguida, é narrado o dia atribuído ao principal surto de André que, sobre um carro de boi, sumiu aos trancos no capão. Desde então, todos os episódios de violência aos quais não se achavam culpados, eram atribuídos logo ao personagem da loucura, o que de certa forma soa melhor que atribuir à obra do diabo, como muitos faziam no interior do País. Em modo geral, os contos de Bernardo, assim como romance, são ricos em descrições de cenas violentas, de caracterização da miséria humana e até mesmo do grotesco.

[…] Nota-se que a clausura era vista como solução dos concidadãos para André. O próprio coronel contrata “bate-paus pagos pela Intendência, com o escopo de prender o doido”. Esse feedback explica as correntes inicialmente relatadas na primeira descrição da personagem que estava presa “no calabouço úmido, com o corpo ferido, magro, algemado e com uma corrente deste tamanho no pé (ÉLIS, 1978)”.

Cumpre observar que com a mudança da capital para Goiânia, o setor da saúde e a qualidade de vida se ampliaria com o interventor Pedro Ludovico. Daí que a tribuna em livro de Bernardo delata o sempre esquecido Norte goiano, que só era visto para pagar impostos.

E que coube a Bernardo debutar com o modernismo ficcional de região, contando ele com um viés político ativista em prol dos mais sofridos, pois os seus livros, de um modo geral, denunciam a violência do chefes políticos da Velha República, recalcados no silêncio mal resignado dos seus personagens, com uma marca relativa de universalidade.

Buscando em sua biografia, o regionalismo de Bernardo se destaca por ideais modernistas, haja vista ter sido o introdutor do modernismo em Goiás, e ainda adepto de ideais comunistas. Daí, talvez, seu caráter de denúncia presente em suas descrições espaciais e em seus personagens nada comuns que denotam o tom de realismo literário de suas obras.

Com efeito,

[…] Para além de uma novela ficcional, podemos notar o grande engajamento social ao produzir uma literatura de denúncia social também. Há vários estudos sobre o coronelismo em Goiás e o autor de André Louco também faz questão de retratá-la aqui. [27]

Na narrativa aqui discutida, Bernardo Élis abre parênteses para dar destaque ao abandono da saúde no interior do Estado ao retratar o alvoroço que a visita de um médico causa na cidade de Corumbá:

Todos iam consultar-se com ele, doentes ou não, pois viam naquela visita uma oportunidade: “Uma ocasião, como passasse pela cidade um médico e todos se estivessem tratando com ele, meu pai também o chamou para examinar mamãe. Não que ele a supusesse doente (ÉLIS, 1978, p. 16)”. Ainda mais adiante está narrado o alto custo das consultas (aproximadamente 5:000$000) e suas receitas intrigantes (as receitas do doutor eram padronizadas)”. Uma ironia à qualidade de atendimento médico destinada àqueles que estavam no sertão do Estado. Mendes (2011, p. 39) fala sobre isso ao dizer que o problema era justamente não haver médicos no interior, essa deficiência era sentida e percebida pela população e também pelo poder público, que acreditava ser a falta de uma escola de medicina radicada em Goiás o grande problema do déficit de profissionais no interior. [28]

Com a fundação da Associação Médica de Goiás, Goiás inicia uma caminhada rumo à consolidação da prática medicinal no Estado. Entretanto, a tão sonhada Faculdade de Medicina de Goiás só veio à existência em abril de 1960. [29]

De outra parte, o protagonista,

Depois de algum tempo preso na cadeia da cidade, acorrentado, e após um episódio de fuga, André Louco é transferido para o sítio de sua família onde a seguinte descrição se lê: No sítio, os irmãos de André prenderam-no ao moirão do curral, pela corrente que ele trazia ao tornozelo. Ali passava o dia inteiro gritando, arranhando o chão, andando em torno do toco. Ali defecava, mijava. Ali caiam detritos alimentícios. Tudo isso formava uma lama fedorenta, em que o louco chafurdava. Vinham porcos e cachorros famintos disputar aqueles restos de comida e o demente se divertia em pegá-los e matar. (ÉLIS, 1978, p. 46.)

Para João Vitor de Souza-Ramos, Ewerton de Freitas Ignácio e Maria Eugênia Curado,

Toda essa degradação talvez pareça difícil de imaginar, mas possivelmente, ao perguntarmos para um idoso que viveu ou vive no interior sobre as figuras loucas desta época, não lhes parecerá impossível acreditar que desta forma se tratavam dementes. É como se o desespero da família, sem conhecimentos e sem alternativas as levasse também à loucura, aqui de senso comum, de realizar tal ato. É interessante ressaltar que o tema loucura, componente importante da novela André Louco, também pode ser observada nos levar à questão da função do cárcere como mecanismo social repressor a ele relacionado. Veja aí uma forma de tirar do convívio coletivo aqueles que de certo modo traziam desconforto e até mesmo medo, ainda que pela falta de conhecimento.

É sabido que a figura do louco é recorrente na ficção em geral e também na brasileira. Machado de Assis trabalha a loucura no livro O alienista, um dos mais clássicos em se tratando desse assunto. Guimarães Rosa aborda o tema em Soroco, sua mãe, sua filha; de Primeiras Histórias; Carlos Drummond de Andrade em A doida, da obra Contos de Aprendiz; Lima Barreto, em O cemitério dos vivos e tantos outros que, ao escolherem a loucura como temática, desenvolvem uma visão terna do insano, que é um pária da sociedade e que desde Baudelaire, é sempre bem acolhido na modernidade literária. [30]

Isso não se faz diferente em Bernardo Élis, que como autor goiano, mostra uma sintonia da literatura produzida em Goiás com a nacional e estrangeira. Uma das cenas de crise de loucura é narrado por Bernardo da seguinte maneira: Três anos depois, mais ou menos, estava André carreando milho da roça para o paiol, quando, de um momento para o outro, saltou pra cima do carro, gritou uns feios com os bois, metendo o ferrão. O lugar era plaino e descampado (ÉLIS, 1978, p. 4).

Seguido deste episódio vem a missão de prender o louco, tarefa que os policiais da cidade, ou bate-paus, para usar o termo da narrativa, levam quase 20 dias para cumprir. Assim que encontrado, André fica preso no calabouço úmido da cadeia, “com o corpo ferido, magro, algemado, e com uma corrente deste tamanho no pé (1978, p. 5)”.

[…] A loucura não possuía ainda bases científicas que a explicasse e a identificasse. O cárcere era uma espécie de punição e ao mesmo tempo de coação.

Foucault afirma que

A obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel, suposto ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos. Como não seria a prisão imediatamente aceita, pois se só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar dócil, é reproduzir, podendo sempre acentuá-los um pouco, todos os mecanismos que encontramos no corpo social? (1997, p. 196)”. [31]

Durante toda a história da loucura, (Foucault, 1972) a forma como os loucos são tratados nunca foi consenso. A princípio, a loucura era extremamente ligada a fatores sobrenaturais, como possessão maligna.

Interessante que na novela, André Louco, há personagens que ligam a loucura ao sobrenatural. É o caso de Sá Maria Lemes, que durante toda a narrativa não deixa de interceder pela alma do louco, bem como Dona Josefa, mãe do narrador. Ambas as personagens tornam-se mais “piadosas”, após a prisão do louco na cadeia da cidade.

No período clássico, posteriormente, a loucura passou a contar com lugares específicos para ser contida. O mesmo local onde se abrigavam vagabundos, desempregados e miseráveis, era utilizado como abrigo aos loucos.

Segundo Foucault (1972), esses espaços eram chamados de “casas de internamento”. Essas casas, de certo modo, tornaram-se um mecanismo de exclusão social, pois retiravam das ruas as figuras com as quais ninguém desejaria se deparar segregando o louco da sociedade e trazendo comodidade à classe social emergente da época.

É como se houvesse uma necessidade implícita de vigiar e de punir os “não burgueses”. Os insanos, de certo modo, são motivo de incômodo a uma sociedade burguesa e de aparências, pois são imprevisíveis. Mantê-los num local à margem torna-se cômodo para os familiares.

A família da personagem André Louco parece não demonstrar muito interesse em saber das condições em que o parente se encontrava. Durante toda a narrativa, não é mencionada uma única visita ou intervenção familiar no caso do louco. A família é citada em breves trechos como “daí nunca mais voltou à cidade, por que o coronel escreveu para o pai dele que havia processo contra o rapaz, por causa dos peitos da negra Angelina”. (1978, p. 20). (Building the way – Educação e práticas sociais e culturais de ensino/aprendizagem em contextos diversos, v. 8, n. 2, dezembro/2018 ISSN 2237-2075).

Certamente, por se tratar de uma cidade duas vezes interiorana, do interior do Estado e do interior do País, o louco não foi encarcerado da primeira vez que cometeu desatino. Haja vista ainda o fato de que a vítima era negra e o exclusão da sociedade talvez fosse punição maior que a culpabilidade do crime. Vale destacar que de acordo com o Código Penal Brasileiro, o louco é considerado figura “absolutamente incapaz” e, por isso isento de crime.

Mas a população contentou-se, assim como as autoridades da região, em manter André longe da cidade. Estar longe da cidade significa estar longe do convívio social de pessoas ditas “normais”, sãs. É como se a narrativa de Bernardo Élis quisesse denunciar um fato decorrente de anos de história. Ao aparecer novamente em surto, a personagem de André é encarcerada na única prisão da cidade. Uma cela com grades voltadas para a rua, na qual toda e qualquer pessoa que passasse poderia vê-lo facilmente. A cadeia ficava no largo. Um casarão baixo, de janelas de grades, pintado a oca. Pintada com sangue de gente, como dizia Joana. Tomei-me de um pavor obsedante dela. (…). Outras vezes, gozando meu próprio pavor, ficava olhando lerdamente a cadeia, onde outros presos metiam para fora, por entre as grades, seus pés e suas mãos.

[…] Numa cidadezinha de interior, geralmente, a vida corre serena e tranquila, sem maiores sobressaltos. Mas com a presença do louco, nestas circunstâncias até a tradicional Missa de domingo fica com ares de aventura. No geral, as obras bernardianas descrevem a crise do ciclo do gado no sertão goiano, que teve início por volta da década de 1940.

[…] O modo como o autor insere a loucura na novela e como trata a mesma no decorrer da narrativa demonstra que, embora em lugar ermo, a complexidade do ser humano num ambiente social vai além das classes sociais e está além de barreiras geográficas.

Esse aspecto, na obra do autor goiano, pode ser atribuído ao fato de que, ao publicar André Louco em 1944, ainda como conto, o mesmo tivesse consciência da visão que se tinha da literatura regionalista, de um modo geral, e de que possuía, em suas mãos, um instrumento que pudesse divulgar a cultura de seu Estado, abrangendo também aspectos universais. É sabido que a loucura é mal que alcança todos os homens. [32]

Além disto, o escritor acabava de retornar do Rio de Janeiro, onde havia uma efervescência de ideias e alterações no sistema manicomial.

A personagem de André alcança um triste fim, entretanto libertador da saga que o imaginário da loucura lhe fez percorrer em vida. Depois de preso por diversas vezes, de causar tanto incômodo na cidade, André, agora transferido para seus familiares no sítio vivia nu, ao relento, debaixo do sol e da chuva, debaixo do frio nevoento do fim da seca. Os bichos-de-pé pegaram a tomar conta de seus dedos, de seus calcanhares, de seu nariz, de suas orelhas. Aqueles imensos batatões arroxeados, nojentos, que o homem coçava com os dentes, gritando sem cessar (1978, p. 47). Neste episódio havia um sobrinho do louco “cuidando” dele e como se não bastasse a própria doença mental, a criança ainda penalizava sempre o doente com chibatadas e outras maldades. Isso perdurou até o dia em que André, depois de apanhar do sobrinho, apanha-o e causa-lhe nada mais que doze esfoladuras pelo corpo, o que lhe rendeu ficar “moído de pau, em petição de miséria, largado na lama”.

Não bastasse isso, prenderam-no em couro cru, que ia da cintura ao pescoço e nas costas prenderam-no por argolas em trava na cozinha. Por uns três dias, André, moído de pauladas, não podia nem se mexer, tomando salmoura, que lhe metiam pela boca semi-aberta.

O calor da cozinha, porém foi secando o colete. O couro deu de bofes. André berrava que era um gosto. Depois, levantou-se, dando pulos, querendo subir pelas paredes (1978, p. 47) (Building the wayEducação e práticas sociais e culturais de ensino/aprendizagem em contextos diversos, v. 8, n. 2, dezembro/2018 ISSN 2237-2075).

Depois disto, içaram-no ao teto da cozinha, onde, torturado pela pressão que o couro lhe fazia nas costelas, esperneou até desfalecer. Novamente, o imaginário da loucura, permeado pelo religioso, dá à personagem uma nova direção.

Um baiano que estava dividindo fazenda com o irmão de André, autor da ideia do couro cru, cisma de que o protagonista estava possesso por um “isprito” de Antônio Conselheiro. Segue-se a essa “revelação” rezas o dia inteiro, terços pela vizinhança, procissões ao louco de noite e por aí vai. Ninguém lhe prestava o mínimo de cuidados higiênicos e resultado disso foi o corpo ser cheio de corós dos quais era possível ouvir a “cantiga” ao comer a carne da vítima.

Certos de que benzê, como se fazia na Bahia, não resolveria o problema, decidiram jogar criolim para matar os bichos. André então berra até a morte que veio num momento de solidão, pois todos os seus telespectadores saíram do sítio e foram celebrar o terço em Barreiro dos Buritis.

Ao retornarem de lá, pela madrugada encontraram o louco que “pendia da ponta do laço, murcho, a cabeça caída para frente, os braços pendidos (p. 49)”. A constatação da morte veio com desprezo, sem reação de choro e qualquer manifestação.

Estava morto e agora só restava declarar: “Santo André Louco, mártir, orai por ele”. “Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois (1978)”.

O baiano começou a tirar o terço, o pessoal ajoelhado na cozinha, debaixo do corpo do louco. O baiano tinha posto uma medalhinha de São Miguel na boca. Tinha certeza e convicção de que, quando o corpo pegasse a esfriar, aí é que os capetas e os coisa-ruim começariam a fugir do corpo do filho de Deus”.

Como em todo imaginário coletivo, André Louco virou assombração e continuou a causar medo nas noites mais sinistras da pequena cidade de Corumbá. [33]

 

 

Referências:

[1] Loucura e Imaginário em André Louco, de Bernardo Élis. Anne Caroline Fernandes Alves. Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

[2] Idem.

[3] https://www.revistas.usp.br/tradterm/article/view/167757.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Idem. Informações disponibilizadas por Rosa Berardo, no vídeo: SOBRE MEU PRIMEIRO FILME, ANDRÉ LOUCO. Disponível em: Acesso 10 jan. 2021. 300 TradTerm, São Paulo, v.38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm e rearranjo de símbolos e acontecimentos, transmutando-os em outra “configuração seletiva e sintética” (PLAZA 2003: 40).

[8] Ibidem.

[9] Idem.

[10] TradTerm, São Paulo, v.38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm.

[11] Ibidem.

[12] Idem.

[13] TradTerm, São Paulo, v.38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm Figura 3: Discurso de André Fonte: André Louco (1990: 03:27/16:30).

[14] Ibidem.

[15] Frase reproduzida na película, aos 08:29 min. 304 TradTerm, São Paulo, v.38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA www.revistas.usp.br/tradterm –  Figura.

[16] Idem.

[17] Ibidem.

[18] João Vitor de Souza-Ramos, Ewerton de Freitas Ignácio e Maria Eugênia Curado, fonte citada.

[19] Idem.

[20] Ibidem. TradTerm, São Paulo, v.38, fevereiro/2021, p. 291-314 Número Especial – III JOTA (www.revistas.usp.br/tradterm).

[21] Apud Ana Caroline Fernandes Alves, ob cit.

[22] Fonte citada.

[23] João Vitor de Souza-Ramos, Ewerton de Freitas Ignácio e Maria Eugênia Curado, fonte citada.

[24] Idem.

[25] Idem.

[26] Idem.

[27] Idem.

[28] Idem. (Building the way Educação e práticas sociais e culturais de ensino/aprendizagem em contextos diversos v. 8, n. 2, dezembro/2018 ISSN 2237-2075 E de fato, em 1950).

[29] Ibidem.

[30] João Vitor de Souza-Ramos, Ewerton de Freitas Ignácio e Maria Eugênia Curado, fonte citada.

[31]Idem.

[32] Idem.

[33] Ibidem. (Building the way Educação e práticas sociais e culturais de ensino/aprendizagem em contextos diversos v. 8, n. 2, dezembro/2018 ISSN 2237-2075).

  • HELENA M B P VASCONC

    Parabéns Dr. Abilio! É o conto mais forte de Bernardo Élis. Um livro bastante reflexivo, eu já conversei bastante com o Professor Ricardo Assis sobre o conto.

    Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Conteúdo Protegido!!