O Duro e Os Sertões – uma paráfrase de Euclides da Cunha
Naquela estação caía violento aguaceiro resfriando os gerais. De sede não sofreriam os expedicionários do Ministério do Exército na Intervenção Federal setorial, decretada em 1919 no Estado de Goiás.
A comissão de Sindicância Federal, sob a direção do Major do Exército Álvaro Mariante, calculava uma jornada apressada, posto como seria desastroso o cair da chuva sobre a tropa desabrigada, sob aqueles céus abertos, especialmente na região dos gerais da Bahia, surgindo no meio do chuveiro, de improviso, armas disparadas no fragor imaginável como uma trovoada que abalaria nas alturas. Quase mil ou para logo mais, dois mil e tantos homens penetrando, em cambaleios, acurvados sob as mochilas e as armas, em pleno chão inimigo, no tropear soturno das fileiras, no estrépito dos reparos e carretas, nos tinidos das armas, esbatendo-se na calada do ermo e naquela assonância ilhada.
No fim do altiplano, desceriam a serra Geral, correndo e caindo, resvalando no chão escorregadio e encharcado; esbarrando-se em carreiras cruzadas sob o fustigar das bátegas, oficiais e praças procurariam a formatura impossível, vestindo-se, apresilhando cinturões e talins, manobrando armas às pressas; surgindo às discordes vozes de comando; alinhando secções e companhias aforradamente, de arremesso, um cavaleiro isolado, sem ordenanças, precipitando-se a galope entre os soldados tontos no encalço do jagunço invisível – que jagunço é bicho do diabo! – rematavam os combatentes numa animação ruidosa.
No combate surgiriam, tumultuariamente, fundidas, penetrandose, simultâneas, todas as situações, naturalmente distintas, em que se pode encontrar qualquer força em operações – a de repouso, a de marcha e a de ataque.
O Exército marchando pronto a encontrar o inimigo em todas as voltas dos caminhos devia repousar nos alinhamentos da batalha, ou dispersar as forças em marcha, a partir da base de operações em Barreiras ou de Juazeiro, ali próximo.
Iriam, a pouco e pouco, apertando os jagunços até concentrarem-se no Duro, se conseguissem, depois de uma soma de sucessivos ataques parciais. Avançariam pelos espigões dos morros no rumo almejado, por onde descia a estrada, em pontos com a Coluna obrigada a espalhar-se longamente pelas encostas, dispersando-se sem ordem, sem formaturas, com a mesma indagação afirmativa e persistente no ar: caboclos rijos e bravos, joviais e bravateadores ladeariam a tropa – em rastejamentos à ourela dos desvios, rodeando-os, invisíveis, nas rondas cautelosas – espias que formavam um batalhão de cangaceiros…
Constantes, longamente intervalados sempre, zuniriam os projéteis dos atiradores que não se via batendo em cheio nas fileiras, pois o cabra desperta, como sempre, de improviso, surpreendedoramente, teatralmente e gloriosamente, renteando o passo aos agressores.
Obsessão no mesmo imaginar. Ansiedade. Todavia, retomando a certeza de uma força superior e com otimismo, os temores eram logo e novamente afastados. Por todo aquele percurso, passaria a expedição Álvaro Mariante, arrostando as situações calculadas, previstas.
Na planura desnuda dos gerais da Bahia, que as vistas num lance devassam o inimigo, mesmo escondido sob a fronde de um umbuzeiro, a artilharia venceria fácil. Contudo, o inimigo, como ocorre em guerrilhas tais, poderia recuar. Talvez buscasse o fim dos gerais, onde o alcantil descamba em ravinas abertas pela enxurrada que cai das barrancas, na divisa dos dois Estados.
Episódio expressivo na história era digno de recordação pelos estrategistas militares:
–Foi em terreno plano e chato que os tiros rápidos, porém, sucessivos, como feitos por um homem único, bateram grande parte das fileiras de quase 8.000 praças na quarta Expedição do Exército a Canudos.
Vararam-nas; desfalcaram-nas, derrubando, um a um, inflexivelmente, os que as formavam na vanguarda. Destes, muitos, por fim, estacaram atônitos pelo inconceptível de um fuzilamento em plaino escampo e limpo, onde não havia a ondulação mais lijeira acobertando o adversário inexorável.
Outros, porém, teimaram, correndo para as árvores solitárias. E, a alguns passos delas, viam, afinal, à borda de uma cova circular, ressurgir a flor do chão um rosto bronzeado e duro. E pulando do fojo, sem largar a arma, o jagunço, escorregando célere ao viés da encosta, desapareceu embaixo no afogado das grotas.
Na trincheira soterrada trezentos e tantos cartuchos vazios diziam que o caçador feroz estivera largo tempo de tocaia naquela espera ardilosamente escolhida. Outras, idênticas, salpintando o solo, apareciam, salteadamente em roda. E em todas os mesmos restos de munições revelavam a estadia recente de um atirador. Eram como fogaças perigosas alastrando-se por toda a banda.
O chão explodia sob os pés da tropa. Os sertanejos desalojados desses esconderijos, acolhiam-se, recuando, noutros; e as novas trincheiras arrebentavam logo em descargas vivas, até serem por sua vez abandonadas.
O fantasma era o mesmo – sugerindo que os sertanejos do Duro, recuando, se concentrariam, pouco a pouco, na arena do grande teatro de erosão que desce da Serra Geral a caminho de São José do Duro, hoje Dianópolis-TO.
O próprio Chefe Expedicionário, Major Álvaro Mariante, havia comentado desde o Rio com o 1º Tenente Valentim Benício:
“A excursão que vamos fazer está pintada como uma nova Odisséia. Os meios de transporte são dificílimos, há desertos a atravessar e perigosíssimos desfiladeiros a transpor”. (Palavras de Álvaro Mariante, extraídas e adaptadas do próprio Relatório).
Seria mesmo um atulhar as primeiras ladeiras cortadas a meia encosta por todo o percurso. Seguiriam devagar, emperrados pelos canhões onde se revezariam soldados em auxílio aos muares impotentes à tração, vingando os primeiros declives, depois os aclives e as areias imensas do areal em pó – lá se estiram os chapadões. Estacariam em momentos ou em dias, abrigando-se entre ralos arbustos, sem poderem adiantar um passo. Mormente depois dos gerais não havia como evitar o terreno irregular, contornando-o.
À direita e à esquerda se sucederiam montes crespos numa cadeia que se entestava, e procurar entre eles um desvio qualquer pressuporia uma marcha de flanco, talvez dilatada, sob a vigilância dos bandoleiros, o que seria problematizar ainda mais qualquer sucesso vantajoso.
O Major Mariante aquilatou com firmeza a conjuntura gravíssima, num plano de Campanha maduramente arquitetado, antes de determinar a ordem do dia relativa ao avançar no encalço do suposto inimigo, como mais tarde o constataria in loco.
Em que pesassem as Companhias do único Batalhão em Barreiras, na Bahia, magnificamente armadas, aguardando outras para logo que se fizesse necessário e possível a travessia do rio São Francisco, a luta poderia ser, mesmo assim, desigual.
Nas aperturas do dilema acima exposto, porém, e diante do contraste das posições adversas, nenhum ocorria capaz de o resolver. O alvitre do momento resumia-se no avançar com a Coluna do Exército para o Duro, arrostando tudo, ao bárbaro fuzilamento.
Ante a imaginária possibilidade, que já se firmava como um vaticínio, surgiam alternativas intimoratas, como o narraria Euclides da Cunha:
Bombardeariam os morros. Arrojadas de perto as granadas e lanternetas, batendo-lhe em cheio os flancos ou ricochetando, confundiriam nos ares as balas e estilhas de ferro com o lastro aspérrimo das encostas rijamente varridas; e, arrebentando entre fraguedos, deslocando-os, derrubando-os, fazendo-os rolar com estrépito pelos pendores abaixo, como um súbito derruir de lanços de muralhas, iriam desmascarar inteiramente as posições contrárias.
Também em Canudos, numa das quatro batalhas com os jagunços, depois de três horas de fogo em condições parecidas, os Batalhões não tinham adquirido um palmo de terreno com essa estratégia:
A quinhentos metros dos adversários, não tinham – milhares de vistas fixas nas vertentes despidas –, lobrigado um único sertanejo. Não lhes avaliavam o número. Os cimos mais altos, bojando em esporão sobre a várzea, figuravam-se desertos. Mas lá continuavam os jagunços e não se sabia se eram duzentos ou eram dois mil. Nunca se lhes soube, ao certo, o número. E daquele desolamento, daquela solidão absoluta e impressionadora, irrompia, abalando as encostas, uma fuzilaria cerrada e ininterrupta como se ali estivesse uma divisão inteira de infantaria paisana – obtemperava, reminiscente, um oficial. Tolhendo-se-lhes deste modo todos os planos só restariam decisões extremas: ou recuariam lentamente ante a refutação, lutando, até se subtraírem ao alcance das balas; ou contornariam os trechos inabordáveis, buscando um atalho mais acessível, em movimento envolvente aventuroso, de flanco, o que redundaria em desbarate inevitável; ou arremeteriam em cheio com os outeiros, conquistando-os. O último alvitre era o mais heróico e o mais simples.
Nesse excogitar de hipóteses, sugeriu-o o 1º Tenente Valentim Benício da Silva ao comandante do Batalhão do Exército a São José do Duro. Seria mesmo uma exaustão continuar pelos ermos, atormentados no golpear das ciladas pelo inimigo assombroso e fugaz – sempre a mesma obsessão, essa fobia que os encarcerava na imaginação obstaculizando as estratégias de ataque.
Miragem. Jagunços surgindo dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens talvez, em magotes, deslizando, rápidos, silenciosos, rentes ao chão.
Adiante, rebatidos nas dobras do terreno, entaliscados nas crastas – esparsos, imóveis, expectantes –, dedos presos aos gatilhos dos clavinotes, dos rifles, dos revólveres, armas de cano longo de todo tipo, os sertanejos poderiam estar quedados, em silêncio, tenteando as pontarias, olhos fitos nas colunas do Batalhão porvindouro, embaixo, onde marchariam após os exploradores que esquadrinhariam cautelosamente as cercanias.
O Exército poderia ser alvejado no corredor das serranias entrincheiradas – repisavam-se os temores. Fora sem-número de estropiados exauridos das marchas, sem-número de famintos e grande maioria de pusilânimes sob a emoção de morticínios, vendo estirados, insepultos, entre os poucos jagunços abatidos, companheiros pela manhã ainda entusiastas e vigorosos.
Mas que viesse a jagunçada para a luta armada, do modo como viessem – agigantavam-se novamente no grito “Pátria ou Morte” –, e seriam os cabras dizimados com o troar solene da artilharia estrugindo os ares.
Reboaria longamente por todo o âmbito daqueles confins, na assonância ensurdecedora dos ecos refluídos das montanhas, se o fosse por lá. Uma fuzilaria em descargas rolantes e nutridas, com mil armas ou muito mais arrebentando, aclivadas, tiros rasantes, pelo tombador dos morros…
É que, mesmo sendo batidos nas escarpas, nos tesos das serras, caso fossem desbaratados, os jagunços teriam francos, para o Oeste, os caminhos rumo à Bahia, caso não refluíssem para o ocidente buscando nas proximidades da Fazenda Buracão, que estava a apenas sete quilômetros da Vila do Duro e, com certeza, seria o asilo impenetrável a que se acolheriam a salvo e onde se aprestariam para a reação em face dos Batalhões.
O Chefe Expedicionário sabia que no Buracão a polícia de Goiás havia matado o Coronel Wolney, pai do ex-deputado Abilio Wolney, naquele Natal de dezembro de 1918, depois de ele ter dispensado os seus homens no acordo com o juiz Celso Calmon. Mas a polícia goiana só havia conseguido chegar ali depois de enganar os Wolney.
É que o Buracão era um local adequado para a defesa e contra-ataque de Abilio Wolney e seus bandoleiros contratados, porquanto cingido de morros, não permitiria, em tese, ali penetrasse fácil a ação da Campanha. Além da sua topografia, o terreno contíguo da sede da fazenda, embaixo, era circunvalado como muramentos chão a fundo, cujos regos abertos serviriam de tranqueira em prol do jagunço de espreita.
Nos mapas da Campanha, a Fazenda selvagem parecia isolada do resto do mundo por uma vasta cintura de cerros penhascosos em derredor, num diâmetro que para o Sul extrapola em mais de um quilômetro, distanciando a Artilharia da casa-sede. Tinha mesmo em torno aquele círculo formidável de trincheiras naturais na fímbria dos pendores.
E nos valados embaixo, enfiava em todas as veredas que se abriam à frente das casas para terminar num brejo pantanoso. Era o lugar ideal para o labutar dos sitiados.
Os homens de Abilio escalariam os morros, agora do Buracão; varejá-los-iam dispostos para o choque das cargas fulminantes, rolando dos cabeços dos montes, evitando que o inimigo os surpreendesse do alto das colinas, batendo todas as entradas, minadas de trincheiras.
Consoante à tática costumeira, os jagunços deslizariam adiante, recuando, negaceando, apoiando-se em todas as fadigas de uma perseguição improfícua. Aquele penúltimo recuo – o Buracão, se assim o fosse –, denunciava a tática de defesa dos que seriam atacados: a cada passo uma cava circular e rasa, protegida de tosco espaldão de pedras, demarcando uma trincheira. Eram inúmeras, cavadas nos penhascos, e volvendo todas para a estrada os planos de fogo quase a flor da terra – foi tudo quanto fizeram os jagunços desde o pretérito dezembro de 1918 para a guerrilha com a Polícia goiana e que agora poderia servi-los no recontro com o Exército.
Ali o desafio da Expedição seria naturalmente conseguir fechar todas as saídas da Fazenda Buracão. Para tanto, porém, as Colunas sucessivas teriam que, em linha de formatura, conseguir vencer as trincheiras na superfície de nível das montanhas em círculo. Só após isso, desfechariam a carga numa percussão, num deflagrar único de milhares de baionetas de cima para o vale embaixo, ou numa pancada de canhoneio, se até ali conseguissem levar os canhões Krupp, quiçá o monstruoso Whitworth 32, cuja peça ao detonar faria arrebentar, com estrondo, o enorme shrapnel na chegada ao costado dos morros e depois no vale embaixo.
Em seguida, avançariam todos a um tempo num assalto para vencer o jagunço nos valados, com os pelotões da frente embatendo os entrincheiramentos e enfiando pela bocaina da passagem que dava acesso à Fazenda Açude – saída onde a milícia goiana assassinou de atalaia o Cel. Wolney –, enquanto as Brigadas, ondulando a crista dos cimos, a marche-marche, de armas suspensas e sem atirar, venceria velozmente a distância que a separava do inimigo lá embaixo.
Os sertanejos, entocaiados a cavaleiro, seriam golpeados, isto é, se não conseguissem fugir antes do cerco pela referida falha geológica que dava saída para a Fazenda Açude. Fora que as baixas do Exército sempre foram golpes sem reparo em combates dessa natureza.
Planos e mais planos para todos os eventuais incidentes. Um último problema repontava nas conjecturas da estratégia dos sitiantes: batidos na fímbria do alcantil lá atrás; vencidos a muito custo e tempo no coleio das serranias que formam a cordilheira da Serra Geral na divisa da Bahia com Goiás, ou desguaritados do Buracão, adiante, os bandoleiros, se não tomassem destino ignorado, talvez escapariam retrocedendo para o Vilarejo do Duro, imiscuindo-se na mataria que orlava as casas da Vila, agasalhando-se nelas depois, como num ninho – uma aldeia civilizada num claro da mata.
O arranque final das tropas sobre a Vila seria um sucesso vendo os sertanejos enterreirados, surgindo em grita ou fervilhando no matagal rarefeito, em roda; vultos céleres, fugazes, indistintos, desaparecendo dos claros das galhadas; teriam, quem sabe, os guerrilheiros atrevidos que viriam morrer na fumaça das descargas, na ponta dos sabres.
A preliminar cogitada no traçado original com certeza incluía um bombardeio firme nesse último reduto – a Vila –, em que entrariam todos os canhões do sítio, batendo por espaço de tempo a área da praça a expugnar-se. Somente depois que eles emudecessem, arremeteriam as Brigadas assaltantes, de baionetas caladas, sem fazerem fogo, salvo se o exigissem as circunstâncias.
Em tal caso, porém, devia ser feito na direção única da meridiana, a fim de não serem atingidos os Batalhões ou Companhias jazentes nas posições próximas ao conflito – de novo acalentado na imaginação. Mesmo os entrincheirados na ‘grota’, acidente natural dividindo o largo da Vila ao meio, refluiriam para o interior das casas abandonadas, o derradeiro baluarte. Sim, havia sido ali que a Polícia goiana resistiu àqueles mesmos guerrilheiros por três dias no “Barulho de 1919” para depois fugir acovardada – pois os seus soldados morreriam mesmo.
E dali teriam mil portas por onde comunicariam com as cercanias e abastecer-se-iam à vontade antes de serem cercados. Não havia perder-se uma granada única. Bateriam nas cimalhas do Sobrado, dos Casarões, da Igreja de paredes em adobes dobrados, onde por certo também estariam de emboscada.
Balas saltando em ricochetes largos sobre a única praça do vilarejo e arrebentando sobre os casebres, esfarelando as coberturas de telhas de barro. Entrariam atirando pelos becos, nas poucas esquinas, e revolveriam, de ponta a ponta, inflexivelmente, batendo casa por casa, o último segmento da Vila de São José.
Não haveria anteparos ou pontos desenfiados, que o resguardassem. O abrigo de um ângulo morto formado pelos muros das casas, antepostos aos disparos, seriam inteiramente destruídos pelas trajetórias das baterias de Oeste e Sul. Os jagunços – se lá estivessem –, teriam, intacta, fulminando-os, sem perda de uma esquírola de ferro, toda a virulência de um bombardeio impiedoso.
Caso cercados, e para não morrerem assim, sobraria aos cabras a resistência a pé firme, afrontando os atacantes face a face, em defesa e contra-ataque. Ao mesmo tempo que poderiam desmoroná-lo a canhoneio, tudo indicava – como se deu nos últimos dias nos poucos casebres restantes em Canudos –, que o Duro só seria vencido casa por casa.
Toda a Expedição – como vimos, em Canudos a quarta e última foi de quase 8.000 homens; aqui no Duro, a primeira, com um Regimento de São Paulo e Batalhões de Salvador e Sergipe, seria, depois de congregados, de mais de dois mil homens – iria despender alguns dias para a travessia resistida pelos jagunços nos quase duzentos metros que separavam a parte ocidental, entrada principal, da parte oriental do largo do Duro, onde estavam o Sobrado e do outro lado o Casarão dos Wolney, o primeiro utilizado como fortaleza da milícia de Goiás 3 meses atrás, no recente janeiro de 1919.
E no sertão baiano, como agora no sertão goiano, quiçá nos derradeiros dias de sua resistência inconcebível, os seus últimos defensores, trinta ou quarenta guerrilheiros famintos e esquálidos, ao lado do legendário Abílio Wolney, iriam queimar os últimos cartuchos mauser em cima de mais de mil ou dois mil homens, em meio à assonância dos estampidos, vendo embebidas de todo as Brigadas na casaria invadida, com os sertanejos invisíveis, malignamente e resignadamente esperando a morte, em cujas trancas, os jagunços matariam mais alguém no estrepitar feroz, contínuo e ensurdecedor da trabucada.
É que, nas últimas, os sertanejos “costumavam inverter toda a psicologia da guerra; enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota”. Viriam matar os adversários sobre as próprias trincheiras antes tomadas, se eles próprios não morressem a caminho delas num suicídio formidável.
Euclides o descreveria mais ou menos assim:
Seria uma pertinácia incrível. Acabariam o ataque, mas a batalha continuaria, interminável, monótona, aterradora, com a mesma intercadência difundida em tiros que sulcavam o espaço de minuto em minuto, ou tiroteios alastrando-se furiosamente por todas as linhas, em arrancos súbitos, repentinos combates de quartos de hora, prestes travados, prestes desfeitos, antes que terminassem as notas emocionantes dos alarmas.
O inimigo encantoado, nunca se sabiam quantos, surgiriam sempre de chofre, marcando novos e intermináveis momentos angustiosos de refrega. Quimera de guerra. Utopia heróica.
Por certo algum Sargento admoestava:
–Não viram que no confronto do Duro o irmão do Coletor Sebastião de Brito arrebanhou rapidamente mais de 90 homens em Conceição do Norte, ali próximo à Vila, para engrossar as fileiras da Polícia? Imaginem o Cel. Abilio Wolney, com o seu prestígio! O que não poderia aliciar de paisanos a mais naquele Norte, onde foi eleito deputado por cinco vezes.
Aguardem o andar dos acontecimentos!
Outro discordava: –Acho que não! No retroceder, eles tomariam outros rumos. Não nos aguardariam chegar ao Duro para morrerem fácil ou estupidamente nas casas, onde um cerco de Mannlichers mostrar-lhes-iam o brio, o brilho de um Exército nos clarões das descargas.
Eram circunstâncias fáceis de se deduzirem. E, previstas, apontavam naturalmente um corretivo único: mais colunas de Brigadas caso as ocorrências pessimistas se dessem de fato, com uma direção administrativa, técnica e tática, definida por um estado-maior enfeixando todos os serviços, desde o transporte das viaturas aos lineamentos superiores da estratégia, órgão preparador por excelência das operações encetadas.
E voltavam a parlamentar como que completando as preocupações do começo: chegar até o Duro não seria fácil por tudo e algo mais, pois, assim que avançassem pelo longo percurso deixando a Bahia, faltaria de tudo em caminho. Não haveria um serviço de fornecimento organizado, de sorte que numa base de operações provisória que montassem adiante, ao deixarem Barreiras, não teriam sequer uma estrada de ferro na região para viabilizar o suprimento das tropas com víveres, caso empacassem em recontros pré-estabelecidos.
Não havia um serviço qualquer de transporte suficiente para as toneladas de munições de guerra. Por fim, os soldados que desembarcavam não vinham dos campos de manobras, eram inexperientes. Os Batalhões tinham grande parte do seu armamento estragado, com munições velhas e carecendo das noções táticas mais simples. Era preciso completá-los, vesti-los, melhor municiá-los, adestrá-los e instruí-los, de modo que, por enquanto, continuavam em exercícios na base em Barreiras mais de mil recrutas em armas, dispostos aos combates.
Até ali quedava-se o Chefe Expedicionário Álvaro Mariante com suas precauções no sitiar os jagunços. Era fato. Da região pobre até o último ponto batido não havia recursos para alimentar a tropa, senão o gado dos Wolney, muito adiante e muito mais difícil de ser alcançado, porquanto após a Revolução do Duro em janeiro de 1919 o rebanho, em torno de 16.000 cabeças, que se acreditava apascentado a salvo em região que só os donos sabiam, começava a ser pilhado pela Comissão estadual do famigerado juiz Celso Calmon, que adiante, em 1923, seria substituída pelo Capitão Antônio César de Siqueira, que pilhou todo o gado dos Wolney, Póvoa e Rodrigues para alimentar a soldadesca do Governo do Estado.
Sem estradas de rodagem, senão aquela feita para carros de boi, não conseguiriam sequer um serviço regular de comboios, que partindo de Barreiras abastecesse uma base de operações a ser posta na descida da Serra Geral ou nas vizinhanças da Vila colimada.
Carecia que a equipe de engenharia do Ministério do Exército aplainasse o caminho assim que descessem o alcantil baiano para Goiás e que fizessem pontes sobre grotas ou estuários de riachos, que na seca eram meras depressões no caminho, mas naquela estação os riachos temporários enchiam, transbordavam.
A única ponte daqueles cafundós era aquela construída pelo Cel. Wolney e seu filho Abílio, na travessia do rio da Ponte, com 43 metros de comprimento, já a poucas léguas do vilarejo do Duro.
Todavia, atacariam. Vieram do Rio, de Salvador. Viriam de Aracaju (SE), de São Paulo, de Juazeiro (BA), por ordem do Ministro de Guerra. Três, seis, oito Batalhões se preciso, como foi em Canudos. Era cuidar na formatura, no encalçar o inimigo morro acima ou abaixo, adiante no Buracão ou na Vila, de modo que a Expedição não caísse nas mãos dos jagunços.
Entretanto, foi mesmo assim que o Exército apanhou por três vezes consecutivas naqueles tempos do sertão da Bahia – repetiam, repisavam os mais cautelosos – e disso sabiam os caudilhos que capitaneavam a jagunçada. Abilio de Araújo e Roberto Dorado conheciam bem as estratégias da guerrilha, caldeados nos ‘fogos’ do sertão e por certo fracionariam seus minúsculos exércitos de capitães-do-mato numa fórmula paradoxal – dividiriam os contingentes dos seus homens para fortalecerem e era bem conhecida a tática dos cabras, sempre no mesmo modo de lutar: se dispunham em grupos de três ou quatro rodeando a um atirador único, pelas mãos do qual passavam, sucessivamente, as armas carregadas pelos companheiros invisíveis, sentados no fundo da trincheira, como se dera em Canudos.
Com surpresas de toda sorte previstas, e tudo quanto a guerra tem de mais odioso, o suspeito exsurgia provável. Os soldados veriam tombar, mas ressurgir imediatamente, indistinto pelo fumo, o mesmo busto do guerrilheiro, apontando-lhes a winchester, o parabelum, o rifle, a cartucheira, o bacamarte, a espingarda carregada pela boca do cano.
E se o alvejassem de novo, veriam erguer-se, invulnerável, assombroso, terrível, abatendo-se e aprumando-se nos penhascos, o atirador fantástico. A réplica dos Batalhões alvejando as encostas seria inútil.
Um esparzir profuso pelos ares de mais de um milhão de balas na repetição, continuando, entanto, ameaçados em roda, com os jagunços ocultos, prendendo-os, cortando-lhes o passo para o recuo, sentindo novamente circulados pelos flancos e tendo outra vez, em roda, como se brotassem do chão, os antagonistas inexoráveis, jarretando-lhes os movimentos. A tática invariável do guerrilheiro surgiria temerosa naquele resistir às recuadas, restribando-se em todos os acidentes da terra protetora. Seria a luta da sucuri flexuosa com o touro pujante. Laçada a presa, distenderiam os anéis; permitiria-lhe a exaustão do movimento livre e a fadiga da carreira solta; depois se constringiria repuxando-o, maneando-o nas roscas contráteis, para relaxá-las de novo, deixando-o mais uma vez se esgotar no escarvar, a marradas, o chão; e novamente o atrair, retrátil, arrastando-o – até ao exaurir completo. Os bandoleiros desencadeariam as manobras – estava visto –, estadeando ardilezas de facínora provecto nas correrias do sertão, num vaivém de avançadas e recuos, ora dispersos, ora agrupados, ou desfilando em fileiras sucessivas, ou repartindo-se extremamente rarefeitos os lutadores temerários; e a rojões, rolantes pelos pendores, subindo, descendo, atacando, fugindo, baqueando trespassados de balas, muitos. Poucos seriam os malferidos, que despenhariam rolando em súbitos lances temerários, no meio dos soldados, conseguindo matar alguns, até baquear no chão, onde acabariam cosidos a baioneta ou esmoídos a coronhadas, pisoado sob o rompão dos coturnos.
Desapareceriam inteiramente, às vezes, com outros permanecendo invisíveis nas posições alterosas. Porque não imaginariam, em certas ocasiões, os riscos que correriam: a um lado, nos recessos das tocaias, sinistro e traiçoeiro, procurá-los-iam por sua vez, o jagunço. A caça caçaria o caçador.
Não murmuravam a reclamação mais breve nas piores aperturas; e nenhum se lhes emparelham no resistir à fome, atravessando largos dias à brisa, segundo o dizer de seu calão pinturesco. “Depois dos mais angustiosos transes, viam-se valentes escaveirados meterem à bulha o martírio e troçarem, rindo, com a miséria. Afeitos às parcimônias da frugalidade sem par, os poucos e rudes cabras que nas quadras benignas atravessam o dia com três manelos de paçoca, um taco de rapadura e um trago d’água seriam invencíveis ante um Exército de soldados famintos na travessia dos meses que essas batalhas costumam exigir”.
Os praças não suportariam a existência aleatória, a terços de rações, quando as houvesse nos dias mais difíceis, dividindo-se um boi por Batalhão e um litro de farinha por Esquadra; e, como nos maus dias de Canudos, as empresas diárias, em que se escalavam corpos para arrebanharem gado. Ademais, nessas guerrilhas, costuma não haver tréguas. Nelas surgem investidas súbitas à noite, pela manhã, no correr do dia, sempre improvisas, incertas e variáveis; carregando às vezes sobre a Artilharia, outras sobre um dos flancos, outras, mais sérias, por toda a banda. Estridulam os clarins; forma-se a tropa toda em fileiras bambas, em que mal se distinguem as menores subdivisões táticas, e bate-se nervosamente por algum tempo. Os assaltantes são repelidos. Cai-se, de improviso, na calma anterior. Mas o inimigo ali fica, a dois passos, sinistramente, acotovelando os triunfadores.
É como se Euclides voltasse do País da morte para novamente falar:
Cessa o ataque. Mas de minuto em minuto, com precisão inflexível, mandam uma bala entre os Batalhões. Varia vagarosamente de rumo, percorre a pouco e pouco todas as linhas, de um a outro flanco, num giro longo e torturante, indo e vindo, devagar, traçando ponto a ponto o círculo espantoso, como se um atirador único, ao longe, do alto de algum cerro remoto, houvesse o compromisso bárbaro de ser o algoz de um Exército.
E o poderia ser. Valentes, ainda ofegantes de recontros em que entravam intrêmulos, estremeciam, por fim, ante o assovio daqueles projéteis esparsos, transvoando ao acaso para o alvo imenso, escolhendo, entre milhares de homens, uma vítima qualquer… Em tréplica, dar-se-iam cargas cerradas de fuzis e comblains a toques de corneta, como se fosse uma legião atirando ao léu contra o inimigo que silenciaria novamente, de modo a não combater, cansando o atacante, que jamais seria vencido, mas que restaria esgotado nesse transe.
Era preocupante esse modo de lutar dos cangaceiros, visto que nas batalhas campais, em que a superioridade do número e da bravura exclui manobras mais complexas, o Exército carecia de um terreno uniforme que o permitisse a ação simultânea e igual de todas as unidades combatentes – o que seria possível no largo da Vila, como dito, se lá ocorresse e onde, por exemplo, as granadas arrebentariam as vivendas, mas impossível aquém, na descida da Serra Geral, onde o relevo descai em recostos resvalantes, desafiando estratégia diversa.
Paradoxos de toda ordem. Singular ansiedade nas Companhias que logo se avolumariam com outros Batalhões saindo de Barreiras rumo à Vila perdida do Duro – um monstro contra pequeno formigueiro. Miragem, vertigem, um desvario, uma tentação súbita manifesta nos pensamentos do Comandante Expedicionário, mas viável de ocorrer?
A história estava marcada de outras ocorrências: a sangueira do Inhanduí, a chacina de Campo Osório, o cerco memorável da Lapa, os barrocais do Pico do Diabo, a Campanha de Canudos e, há um século, a evitada Campanha de 1919 em São José do Serra do Duro.
- 16/11/2024 18:26:25 - Zumbi dos Palmares e o Racismo à Brasileira [Artigo
- 07/11/2024 10:59:52 - Literatura Produzida em Goiás em Cena: Reflexões e Homenagens em Colóquio [Artigo
- 06/11/2024 23:58:02 - ‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [V – O SEGUNDO MANDATO DE DEPUTADO ESTADUAL
- 30/10/2024 14:14:55 - ‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [IV - ELEITO DEPUTADO FEDERAL E DEPURADO
- 04/10/2024 20:37:58 - ‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [III - A BIOGRAFIA EM DIÁRIO
- 21/09/2024 01:09:41 - ‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [II – – SURGE ABÍLIO WOLNEY – O PRIMEIRO MANDATO DE DEPUTADO
- 13/09/2024 08:49:18 - ‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [I - MINA DOS TAPUIAS E MATA GRANDE
- 31/08/2024 23:56:36 - ‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [AGRADECIMENTOS, DEDICATÓRIA, SUMÁRIO, PREFÁCIO e INTRODUÇÃO
- 15/08/2024 18:26:32 - ‘A cidade de Ana : Anápolis’ [Capítulo XXV – MEMÓRIAS [Capítulo/parte final
- 09/08/2024 22:55:19 - ‘A cidade de Ana : Anápolis’ [Capítulo XXIV – ABÍLIO WOLNEY NO CONTEXTO HISTÓRICO DE GOIÁS
- 16/07/2024 11:12:25 - ‘A cidade de Ana : Anápolis’ [Capítulo XXIII – ÁRABES, SÍRIOS E LIBANESES EM ANÁPOLIS
- 15/06/2024 23:24:46 - ‘A cidade de Ana : Anápolis’ [Capítulo XXII – CULTURA E LAZER
- Ver todo o histórico