‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [VII – NA PRESIDÊNCIA DO CONGRESSO ESTADUAL. A INVASÃO
[Em diferentes edições e capítulos, o JORNAL CIDADE publica O DIÁRIO DE Abílio Wolney, livro do articulista Abilio Wolney Aires Neto, lançado pela editora Kelps (Goiânia-GO.), em 2009
VII – NA PRESIDÊNCIA DO CONGRESSO ESTADUAL. A INVASÃO
Desde 1911, vinha sendo travada na imprensa um embate entre Abílio Wolney e Totó Caiado por ter Abílio tomado as dores do Senador Estadual Gonzaga Jayme, então seu amigo, que vinha sendo alvo de Totó, em jornal deste. O jornal Estado de Goiás, de Abílio Wolney, era ácido nos ataques a Totó e Eugênio, erguendo um muralho mais expressivo a proclamar a rivalidade política entre eles, que tendia a se agravar ainda mais.
Totó Caiado e Eugênio Jardim, ex-bulhonistas que, na ocasião, apoiaram a eleição do Presidente da República Hermes da Fonseca (1910-1914), vêm hostilizando Abílio Wolney, que na presidência do Congresso Estadual, faz tramitar, como visto, uma lei que prevê uma espécie de reforma agrária em Goiás, em cuja Justificativa acusava os latifundiários como culpados pela miséria da classe operária e desperdício de grandes faixas de terras sem efetiva utilização.
Em 1912, no poente do terceiro e último mandato de Abílio, vamos dar com um dia de sessão no Congresso Estadual.
Abílio abriu os trabalhos com a solenidade de praxe, quando viu dois homens adentrarem o pórtico da Casa de Leis. Era justamente o Deputado Federal Antônio Ramos Caiado (Totó), uma figura desassombrada, palaciano bem posto, semblante ariano, acompanhado de um mulato forte na retaguarda.
Ao vê-lo, num átimo, Abílio trouxe as reminiscências dos recalques de 1900, quando, embora eleito Deputado Federal, fora depurado pela conspiração de forças ligadas a Caiado. Por certo lembrou-se também do golpe no Partido Democrata e dos últimos anos e dias de batalha na imprensa.
Acusando forte tensão de nervos e mergulhado no passado, Abílio recordou num instante a mãe no Duro. Sim, ela nunca o quis naqueles confins da senda política.
Contudo, não perderia a pose de presidente do Parlamento no Estado, ali a descerrar as suas portas brasonadas à dignidade e ao poder do cargo. Afinal, era o cabeceira da mesa.
Mas antes de dizer palavra, a voz firme de Totó quebrou o breve silêncio apreensivo como a empeçar um discurso. Erecto, dizia ter ido se avistar com o projeto em tramitação, pertinente à divisão de terras pertencentes à sua família, ou melhor, aos proprietários das terras rurais que realmente tinham valor e que se situavam nas regiões civilizadas de Goiás.
A entonação do verbo causava espécie no Plenário, por aquele modo de se pôr em frases rajadas.
E, de fato, tramitava o Projeto de uma Lei revolucionária para a época, onde eram reconhecidos os direitos de camponeses, com mais de dez anos de posse na terra, fosse onde fosse no Estado. Uma espécie de reforma agrária. A matéria feria sobremaneira os latifundiários goianos ou, precisamente, a oligarquia Caiado. [99
Por esse tempo, havia uma trilha batida de desmandos, mas ninguém protestava, não se falava senão à boca pequena.
Correligionários honestos, raros, da oligarquia compactuavam pelo silêncio… Correligionários de Abílio, como Gonzaga Jayme, de Pirenópolis, e Emílio Póvoa, ambos oposicionistas, se contrapunham aos repetidos atos infamantes, mas às caladas dos dias e das noites goianas.
Caiado, pela força política e pelo grito truculento e dominador, trazia a seus pés a cidade de Goiás, não se diga o resto do Estado, onde prepostos reinavam, gente naturalmente desfibrada por afeita ao lado pragmático do enxurro político, ou desavisada, ou por interesses de mando e desmandos. [100
Mas Abílio foi firme e, tomando as rédeas na direção dos trabalhos, bradou que os Deputados Federais tinham voz no Congresso Nacional. No parlatório do Congresso Estadual, a palavra era concedida pelo presidente tão-somente aos Deputados Estaduais com assento no Plenário, e concluiu decisivo e austero:
– Deputado Ramos Caiado, nenhuma palavra a mais! Em nome da ordem, retire-se desta Casa!
Totó deu passos para o desforço, mas refluiu ao gesto de Abílio que levou a mão na gaveta da mesa simulando sacar de uma pistola, embora não a tivesse ali.
Caiado saiu, mas deixou claro:
– Isso não vai ficar assim!
Segundo Godoy Garcia,
Totó Caiado era em Goiás a lei e a borracha. Uma voz, uma única voz se levantou, de forma aberta contra o impulsivo sátrapa, a do Deputado do norte de Goiás, Abílio Wolney. Foi, nesse dia, um ato heróico. Voz destemida que se levantava, todos reconhecendo a temeridade daquela resistência, no vigor da atitude política que viria colocá-lo no pelourinho, hoje ou amanhã.
Totó dominava também o poder judiciário e o legislativo; deste, arrancava leis a seu favor e chegou a criar uma lei que permitia requerer terras do Estado, sem pagamento.
É que os governantes se esmeram sempre em praticar atos de desacordo com o progresso, em tomar medidas absurdas que vem tolher a lavoura pondo em dificuldade a vida de nossos pobres patrícios, levando a ruína em muitos lares. […] O pequeno estado do Espírito Santo fez a mesma coisa, há pouco tempo, e, pensamos, que não se arrependeu de ter dado esse passo, porquanto a lavoura ali vai pouco a pouco se intensificando e o progresso surgindo a olhos vistos. […] Copiemos, pois, os atos do Governo do Espírito Santo e tenhamos um gesto absolutamente igual que lucraremos muito mais, em vez de despejarmos os pequenos agricultores das terras devolutas, já por demais desvalorizadas. […] Recue enquanto é tempo o sr. Secretário de Terras e Obras Públicas e deixe de executar o impensado ato que tanto protesto tem levantado, visto como intenso golpe será desferido sobre a lavoura e um grande mal sofrerá o povo que dela vive”.
Na Cidade de Goiás, Abílio Wolney usou da sua tribuna de Deputado e Presidente, até quando ela durou para sempre denunciar e protestar. Sempre que cogitava, concluía estar no meio de um sistema de luta em que a vida se revelava nas bases da fortuna ou da dominação política, onde os homens se apoiavam, respirando e transpirando aquele início de século. Não guardava a vocação de perder. Parecia-lhe claro que a realidade do poder temporal se media na aquisição de um lugar nos palacetes aristocráticos.
Abílio Wolney, há mais de 10 anos, estava no Partido Republicano Federal de Goiás, dele saindo momentaneamente em decorrência do Movimento de 1909, engendrado por Leopoldo de Bulhões, que criara o Partido Democrata, legenda tomada meses depois pelos Caiado, os quais, com ela, seguiriam o seu percurso truanesco na história.
E como Abílio não tivesse aderido à hegemonia Caiado, prosseguiu no Partido Republicano Federal, fraco e fragmentado.
Logo nos primeiros anos de governo, os Democratas de 1912-17 mostraram a que vieram, degenerando o aparelho do Estado em meio aos interesses pessoais veiculados nas administrações, marcadas por uma assustadora alternância de personalidades no poder, como se vê a seguir:
Joaquim Rufino Ramos Jubé – Presidente do Senado: 30-03-1912 a 24-06-1912;
Herculano de Sousa Lobo – 2º Vice-Presidente: 25-05-1912 a 10-06-1913;
Joaquim Rufino Ramos Jubé – Presidente do Senado: 10-06-1913 a 31-07-1913;
Olegário Herculano da Silva Pinto – Presidente: 31-07-1913 a 06-07-1914;
Salathiel Simões de Lima – 1º Vice-Presidente: 06-07-1914 a 30-06-1915;
Joaquim Rufino Ramos Jubé – Presidente do Senado: 30-06-1915 a 0605-1916;
Salathiel Simões de Lima – 1º Vice-Presidente: 06-05-1916 a 13-10-1916;
Aprígio José de Sousa – 2º Vice-Presidente: 13-10-1916 a 09-05-1917;
Salathiel Simões de Lima – 1º Vice-Presidente: 09-05-1917 a 14-07-1917.
A oligarquia não dominava num ordenamento pacífico; Totó se arranjava sempre com os seus desmandos, com abertos crimes cometidos pelos grupelhos, lá nas cidades desamparadas de mínima garantia de vida social, política, jurídica. O atraso, o isolamento, a compulsão da violência, como norma natural nesse tempo no incipiente e insulado território de Goiás, de onde Hugo de Carvalho Ramos retirou suas páginas pungentemente reflexivas dessa canhestra época. [101
Vivia-se a fase conturbada da primeira República proclamada em 1889. Consolidada a oligarquia do herdado ciclo do feudalismo, vamos ter a cultura do policialismo, poder discricionário e sobas oficiais, o Estado a serviço dos grupos, o cinismo primário e burocrático, a truculência aberta contra o mais humilde cidadão e contra qualquer voz que reagisse à ordem discricionária e sem justiça.
Depois de 1912, a primeira que piorou foi a polícia. Meteram nela soldados remanescentes das colunas que vieram de Mato Grosso, homens que foram aliciados pelos caudilhos de Vacaria, entre a escória desempregada e ociosa da fronteira da Bolívia e do Paraguai. Para o interior, foram mandadas armas obsoletas e desumanas, tais como as Comblains e as Mannlichers, que abriam tremendo rombo no corpo humano, tornando impossível a salvação do ferido. [102
Rumo à consolidação da oligarquia, depois de 1912, Totó será reeleito para mais dois mandatos de Deputado Federal e dois outros de Senador.
E nesse diapasão, até 1917 e daí por diante a coisa vai se agravar ainda mais.

Cel. Antônio Ramos Caiado (Totó), Deputado Federal e depois Senador, Chefe da Comissão Executiva do Partido Democrata em todos os Governos entre 1912 e 1930 (Acervo de Marco Antônio Veiga de Almeida).

Cel. Eugênio Rodrigues Jardim, Presidente da Comissão Executiva do Partido do Governo, cunhado de Totó Caiado e preposto do Presidente Hermes da Fonseca. Conspirou para a eliminação de Abílio Wolney, apoiando as autoridades do Duro. Adiante sucederia o concunhado Des. João Alves de Castro na Presidência do Estado (Fotografia exposta na galeria de ex-Presidentes do Estado de Goiás, no Palácio Conde dos Arcos, na Cidade de Goiás. Diretor José Filho Costa)

Rua da antiga Cidade de Goiás
[99 Adiante, em 1919, quando estará na Presidência do Estado o Des. João Alves de Castro, tendo o seu irmão como Secretário de Terras, sob o título “Medida contraproducente”, leia-se no Jornal Goyaz, ano XXXIV, N. 1581, p. 1 – de 31/5/1919, o seguinte:
“Sabemos que o sr. dr. Agenor Alves de Castro, Secretário de Terras e obras públicas, para se mostrar zeloso no exercício de seu cargo, acaba de tomar a enérgica medida de expedir circular aos delegados de polícia, solicitando-lhes o seu eficaz concurso, no sentido de serem despedidos das terras devolutas as pessoas que nelas se acham fixadas desde muito. A providência, ora levada a efeito pelo titular indicado, sobre ser odiosa e antipática, nenhum resultado prático vem trazer para o estado, que verá, por certo, a sua população diminuída, e a sua lavoura ainda bem rudimentar reduzida à expressão mais simples. Acresce, ainda, que muitos dos locatários de semelhantes terras têm direito de posse já firmado, indo naturalmente defender no judiciário o mesmo e talvez o estado tenha de despender grandes somas com o pagamento das custas, saindo o feitiço contra o feiticeiro. Enquanto em outras unidades da Federação nacional, os governadores procuram dividir em lotes grandes faixas de terras para serem distribuídas gratuitamente pelo povo, no intuito tão somente de incrementar a agricultura, em Goiás se dá o inverso, procurando despejar os lavradores de pedaços de terras que são pouco valorizados.
[100 GARCIA, José Godoy, Aprendiz – Estudos Críticos, Thesaurus, 1997, p. 52/65.
[101 Idem.
[102 GARCIA, José Godoy, 1997, obra citada.
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