PAINEL CULTURAL

DR. ABILIO WOLNEY AIRES NETO

‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [I – MINA DOS TAPUIAS E MATA GRANDE

[Em diferentes edições e capítulos, o JORNAL CIDADE publica O DIÁRIO DE Abílio Wolney, livro do articulista Abilio Wolney Aires Neto, lançado pela editora Kelps (Goiânia-GO.), em 2009

 

I – MINA DOS TAPUIAS E MATA GRANDE

 

São José do Duro veio de um passado remoto. Teve o seu começo num arraial que repontava a nordeste da província de Goyás, distante 906 quilômetros da cidade de Vila Boa, a vetusta capital goiana, fundada pelo Anhanguera. Na cartografia da época, o minúsculo povoado das lavras próximas à falda da Serra do Duro, teve sua origem na descoberta de ricas minas de ouro pelos índios Acroás e Xacriabás.

O ponto, infiltrado de veeiros fartos, seria nominado Mina dos Tapuias, dentro da Mata Grande ou Grande Mata, local de caça dos nativos, onde uma índia fazia as necessidades fisiológicas, com tempo para prestar atenção numa pedra de tênues fagulhas douradas, cintilando ao reflexo dos raios do sol, a mostrar ignota riqueza nela incrustrada. Daí surgem as lavras do ouro e passa a se chamar São José do Ouro.

O lugar chamou a atenção e o Governador da Capitania de Goiás, Dom Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, anuindo reclames da nascente população, enviou ao sertão uma Comitiva composta de padres jesuítas e homens experientes em catequizar índios bravios. [7

Em razão disso, foram fundados dois aldeamentos, separados por 12 quilômetros um do outro: O primeiro, destinado aos Acroás, com mais ou menos seiscentas criaturas, foi erigido nas proximidades do sopé da Serra do Duro, trecho ocidental da Serra Geral, nas margens do riacho Sucuriú, nominado Aldeamento do Duro ou Missões, onde hoje está o povoado Missão. O segundo foi localizado às margens do córrego Formiga, com uma população de Xacriabás em torno de 250 tapuias. Nesses locais, o homem branco aglomerava os aborígenes, com a finalidade de serem educados, evangelizados e servirem de mão de obra na exploração da Mina.

Os padres jesuítas resolveram construir uma capela, entronizando, num nicho, a imagem de São José, razão por que o Aldeamento do Duro passou a ser também chamado Aldeamento de São José do Duro. Como a finalidade dos aldeamentos era evitar que os índios continuassem atacando os arraiais de mineração do norte da Capitania, buscou-se evitar o confronto com a mediação dos chefes das tribos. Todavia, os aldeamentos restaram inexitosos, porquanto, entre os próprios missionários, havia dissensões, além das desinteligências entre eles e o tenente-coronel Venceslau Gomes da Silva, a despeito da intervenção do Governo.

Os jesuítas tentavam assumir o controle total dos aldeamentos, obrigando o conde D. Marcos de Noronha a intervir, inclusive, pelos prejuízos que as despesas das missões vinham causando ao Tesouro Real.

Para agravar a situação, uma epidemia de sarampo, ocorrida em 1753, fez esvaziar o Aldeamento dos Acroás, que ficou reduzido a quase nada com a morte de alguns índios e a fuga da maioria para as matas, além de lançarem a culpa das mortes nos brancos.

 

Missões em época ignorada (Fotos Voltaire Wolney).

 

Igreja das Missões reestruturada. Acredita-se que no morrote à esquerda, onde estava erguida a igreja primitiva (demolida), esteja sepultado um padre, segundo a Prof. Juvanice Dinis (Jú).

 

Quando passou pela Província de Goiás, em 1840, a caminho de Natividade, George Gardner, botânico inglês que esteve no Brasil estudando a flora nativa, andou pela Aldeia do Duro, que ainda mantinha alguns índios descendentes dos primeiros habitantes da primitiva aldeia jesuítica, fundada em 1751. Assim a aldeia foi descrita: “[…] tem cerca de vinte casas, todas do mais mísero tipo. A maior parte é feita com armação de estacas cobertas de palmas e muitas se acham de tal maneira avariadas pelos efeitos unidos de anos e intempéries, que já nem sequer servem de abrigo contra o vento; outras, construídas de varas barreadas (pau-a-pique), estão ainda em piores condições. São dispostas de modo a formar um quadrado irregular, mas dois lados ainda permanecem quase abertos; do lado oeste há uma pequena igreja quase em ruínas […]. O total da população, no tempo de minha visita, montava a umas duzentas e cinquenta almas. Conquanto a maior parte dos habitantes seja de puro sangue índio, há alguns mestiços de pretos, geralmente escravos fugidos, que de tempos em tempos ali se vieram estabelecer entre os primeiros […] A parte principal do alimento desta gente é de natureza vegetal: frutas silvestres que buscam nas matas. O pouco de sua alimentação animal é obtida pela caça, ocupação em que os moços se comprazem muito mais que no trabalho das plantações”. [8

 

Aldeia do Duro – desenho exposto no “Palacinho” em Palmas-TO.

 

Muito ouro encantado nessas cercanias. Os índios, quase todos afugentados, de longe davam conta de sua riqueza ao perceberem o interesse dos colonizadores do lugar. Então começaram a fazer cerco, querendo guerra! E ela foi feita, proveniente de muito ódio, pois embora não soubessem explorar as riquezas do seu chão, eram os donos do lugar, vendo-se acotovelados pelos brancos, que trouxeram epidemias que os espalharam. Vendo o tempo passar, surgir a criação de gado, as plantações, os seus terrenos sendo cercados. [9

Sob o título Conflitos, em texto datilografado, narra Abílio Wolney:

A parte dos índios Xerentes que retirou-se do aldeamento de Missão, alguns anos depois, munidas a seu modo, voltou e atacou os aldeados, os quais tinham como Cap. o possante Lázaro e já possuíam armas de fogo.

Sob seu comando entrincheiraram-se na Igrejinha e mais numas casinhas cobertas de telhas, donde se defendiam a tiros, mas os atacantes eram numerosos; o cerco já demorava três dias, os víveres e água já esgotavam, quando Lázaro se lembrou de subir a torre da Igreja, donde avistou o Cap. dos atacantes com suas vestes de comando, dando ordem de avançar. Dali do alto, com um tiro certeiro prostrou-o, e bastou. Os atacantes correram conduzindo o cadáver do chefe e nunca mais voltaram.

Lázaro, que ainda conheci, veio a falecer em 1888, deixando sua aldeia incorporada à nossa civilização – não teve mais sucessor. [10

 

Com os jesuítas, os índios aprenderam a adorar a imagem de São José no aldeamento Missões. A uma outra imagem da Igrejinha deram o nome de São Lalau [11, que passou a ser o deus das suas tribos.

Como visto, já armados pelos brancos, que os ensinaram para suas defesas, agora os tapuias empunhavam as armas de fogo contra os seus próprios catequizadores, e porque não eram bem compreendidos na tradução de sua linguagem, pertencente à família Jê, tronco macrojê, não tupi-guarani, [12 foi fácil se porem em guerra também contra os jesuítas e outros exploradores de ouro.

Assim, em 1757, novamente, os índios se rebelaram, provocando um grande morticínio, matando os soldados e o missionário José Nrª. (Nogueira?).

As hostilidades se prolongaram por alguns anos causando a morte de duzentas pessoas, ficando muitas feridas, trazendo sérios prejuízos à Capitania. [13

A rigor, e no final das contas, queriam mesmo eram as imagens dos seus deuses e baterem em retirada, quase extintos, cheios de rancor e em busca de outras terras…

Os índios xerentes e gueguês [14 são também confluentes na origem histórica do Duro. Os documentos se referem a eles noutra parte do embrionário vilarejo. Com efeito, em meados do século XIX, esses silvícolas aterrorizavam a região dos gerais de Goiás, nos limites com a Bahia.

 

Mina dos Tapuias, na parte leste da cidade. Está abandonada (Arquivo de Voltaire Wolney Aires).

 

O povoado nascente a umas duas léguas para o outro lado das ‘Missões’, que muito depois seria chamado de São José do Duro, nome emprestado do aldeamento, adotaria o santo como padroeiro, formando-se a distância dos aldeamentos e ao lado de um garimpo, onde a tapuia encontrou a pedra tauxiada de ouro pela natureza.

Então, o futuro nome Duro [15 seria em razão da localização, primeiro do aldeamento Missão e depois da Vila, em território próximo à Serra do Duro, parte da Serra Geral, encosta da Serra da Mangabeira, que mais não é que uma das muitas denominações do Sistema Central ou Goiano, constituído por uma cadeia de montanhas que:

 

[…] centraliza um horizonte vasto de serranias fracionadas em morros de encostas indistintas que se amplia, até que em plena faixa costeira do alcantil baiano, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra ampla lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas esplêndidas, imitando cordilheiras até o andar onde começa o Estado da Bahia, soerguendo dali em altiplanos e perdendo-se no horizonte azul até os contrafortes do maciço central do Brasil. [16

 

A Serra Geral afigura-se cortina de muralha monumental que termina em crista altíssima, com sulcos de erosão que as retalham em cortes expressivos. Píncaros centralizados, que originam quadros naturais imponentes em região alpestre num tumultuar de morros. Há séculos, as fortes enxurradas fizeram vales em declive, muramentos desmantelados de coliseus em ruína, desabando-se, que desaparecem de todo em vários pontos. [17

Voltando as vistas, caindo para os lados de cá, o paredão desdobra-se em cavernas, abrindo-se em ravinas e falhas geológicas para, em seguida, formar grande depressão estendida dos penhascos, descendo em planícies vastas pelos vértices dos albardões, que se distanciam em paisagem expandida nos chapadões ondulantes – grandes tablados cheios de brejos, onde o gado pasta na seca. O observador pode se deleitar com o contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas.

Muralhas outras, em blocos de pedras, aformoseiam o cenário ecológico nos seus baixios, lembrando ruínas incas, que se alteiam dominando, majestosas, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro, entre outras muralhas a pique. As esculturas geológicas espetaculares são a herança dos fenômenos físicos, balizas fincadas nos pródromos da vida na matéria em ignição e que ainda presidem o ciclo e performance do nosso planeta.

 

Foto de índios xerentes de outra região, para se ter uma ideia do biotipo deles.

 

Grupo de indígenas da região em frente à Igreja Sagrada Família, após o ano de 1900 (Fotografia e anotação constantes do livro Colégio João d’Abreu, Amor História Educação, de Voltaire Wolney)

 

Depois vão-se esboçando as paisagens que se aclaram a leste, fixando a luz solar despejada num próspero teatro de evolução e vida até o retorno à Terra das Dianas.

Por ali, a luz da Lua beija, em silêncio, a beleza melancólica das amplidões naquelas crostas solidificadas em espaços ilimitados que se miram. Faz o homem viajar na intuição de uma realidade de milênios, plasmada num laboratório de crateras, talvez de vulcões irrompidos na origem da criação da Terra.

Geograficamente, o futuro município englobava a região montanhosa, com economia baseada na agricultura, e a região do vale do Maranhão, onde predominava a pecuária, maior destaque na época.

No ano de 1839, Manoel Lourenço Cavalcante, ascendente da família Ayres Cavalcante, arrematou em hasta pública a Fazenda Nova Colônia [18, vizinha ao local, que já era conhecido como ‘Duro’, depois ‘Lavras do Duro’, com o qual mantinha intercâmbio direto.

Em 1852, a vizinha vila de Conceição do Norte [19 foi emancipada e, a partir daí, o arraial do Duro passou a ser seu Distrito com o nome de ‘São José do Duro’.

Coube ao Major João Nepomuceno de Sousa – minerador no local desde 1840 – a honra da fundação da localidade, bem como a organização do Distrito de Paz e, ainda, por sua influência, a emancipação política ocorrida em 24 de agosto de 1884, pela Resolução nº 723, da Câmara Provincial de Goiás, tendo sido instalado o município de São José do Duro, em 1890, sendo o fundador o seu primeiro Intendente.

Banhada pelos rios Palmeiras, Duas Pontes, Gameleira, Manuel Alvinho, Manuel Alves e Peixe, que têm suas nascentes na Serra das Vertentes e pertencem à bacia do Tocantins, geograficamente a região englobava a parte montanhosa, com economia baseada na agricultura, e a parte do vale do Maranhão, onde predominava a pecuária, maior destaque da época. Adiante, seria a sede da mesa de Rendas do Norte e da Comarca do Rio Palmeiras. Colocada ali, na fronteira oriental da antiga Província de Goyas, fazia comércio de importação e exportação com os portos de Barreiras e São Marcelo, no Estado da Bahia, distando 252 quilômetros do primeiro e 192 quilômetros do segundo.

Na sociedade da época, podiam-se distinguir dois grupos, que se diferenciavam no modo de se relacionar com a política e que exerciam grande importância no quadro social: os que estavam com o Governo e os que não estavam.

 

Serra Geral vista do Setor Cavalcante em Dianópolis. Na primeira fotografia, temos a parte consignada nos mapas medievais como Serra do Duro (Foto Marco Villas Boas, em site de Antônio Costa Aires).

 

Fachada do prédio onde funcionou o Congresso Legislativo do Estado de Goiás de 1891 até 1930, na Cidade de Goiás, antiga continuação da Rua da Abadia. O local serviu, mais tarde, para a instalação da primeira Faculdade de Direito de Goiás. Há informações pouco seguras de que que o Congresso funcionava na Casa de Câmara e Cadeia, atual Museu das Bandeiras. Lá ou aqui, Abílio Wolney exerceu os seus mandatos de deputado. (Foto do autor)

 

[7 Palacin, 1995

[8 Texto exibido em parede interna do “Palacinho”, O Museu Histórico do Tocantins, em Palmas (TO).

[9 Informações constantes de mensagem do livro Mensagens e Poemas do Além, de Voltaire Wolney Aires.

[10 Parte do documento redigido por Abílio Wolney, em 1940, transcrito na íntegra no Capítulo XVI.

[11 A imagem do São Lalau foi adquirida por volta de 1952/3 pelo viajante e colecionador antiquário José Claudino da Nóbrega, que publicou o livro “Memórias de um Viajante Antiquário”. Talvez a imagem esteja hoje num museu em Florianópolis (SC). Teria ela meio tamanho de um homem, não se sabe se representando um dos Santos da Igreja Católica (São Nicolau?). Talhada em madeira, traz nas mãos uma pia batismal, naturalmente para o batistério dos fiéis e índios catequizados em Missões (Duro).

12 Em Goiás, os acroás eram oriundos das margens do Rio Balsas.

13 CHAIN, Marivone de Matos. Os Aldeamentos Indígenas da Capitania de Goiás, pág. 116.

14 Povo indígena extinto, também de filiação linguística jê, tronco macrojê, que habitava originariamente a região do rio Itaim e a nascente do Rio Parnaíba (PI).

15 Cf. Quinta-Feira Sangrenta, obra citada.

16 Paráfrase de Euclides da Cunha em Os Sertões.

17 Idem.

18 A Fazenda Nova Colônia ficava no município de Santa Maria de Taguatinga e hoje as suas terras são sede do município de Novo Jardim (TO).

19 Hoje Conceição do Tocantins.

 

[Continua na próxima postagem quinzenal, com a publicação do Capítulo II

3 Comentários

  • Que viagem no tempo acabo de fazer! Que maravilha de explanação verbal, sobre tão importante área geográfica em Goiás. Orgulho de nossa raça, pouco conhecida, porém muito importante para nossa história. Abilio Wolney, entre outros atributos intelectuais, um grande historiador.

    Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Conteúdo Protegido!!