PAINEL CULTURAL

DR. ABILIO WOLNEY AIRES NETO

DR. ABILIO WOLNEY AIRES NETO é juiz de Direito titular da 9ª Vara Cível de Goiânia-GO.; graduando em Filosofia e em História; e, acadêmico de Jornalismo; autor de 15 livros de história regional, poemas, crônicas e Direito; ocupante de cadeiras no Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis (ICEBE), na Academia Goiana de Letras (AGL), Academia Goianiense de Letras (AGnL), Academia Dianopolina de Letras (ADL), Academia Aguaslindense de Letras (ALETRAS); e, membro da União Brasileira de Escritores (UBE-GO) – Seção Goiás; e, do Gabinete Literário Goyano. Contatos: @AbiliowolneyYouTube

‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [X – ‘O ASSASSINATO DE VICENTE BELÉM’

[Em diferentes edições e capítulos, o JORNAL CIDADE publica O DIÁRIO DE Abílio Wolney, livro do articulista Abilio Wolney Aires Neto, lançado pela editora Kelps (Goiânia-GO.), em 2009

 

X – ‘O ASSASSINATO DE VICENTE BELÉM’

 

Terminava o ano de 1917. O calendário registrava o dia 29 de dezembro, terrível data e nova fase na história de São José do Duro.

Por volta das 16 horas daquele dia nublado, que, precocemente, entardecia sem a beleza do crepúsculo, Vicente Pedro Belém cavalgava, retornando do Duro para o seu pedaço de terras na Fazenda Pedra Grande, que ficava logo depois da travessia do córrego Corrente, a uns 06 quilômetros da Vila.

Ia atravessar o riacho, cujas margens eram recobertas de um prado sinuoso e irrigado pela brejaria, no coleio de um buritizal. Do outro lado, estava o sítio de Ana de Melo [132, por onde a estrada vicinal prosseguia dando tráfego a todos os que, por aquelas bandas, criava e plantava.

Na passagem do córrego, justo na barra com o brejo que ali desemboca, o burro parecia ter amuado. Será que farejou algo estranho?

Talvez, mas ao estancar o passo dilatou as narinas e enfiou a boca n’água, mal sorvendo os primeiros goles.

De repente, detrás de uma touça, formada da ramagem das árvores, aparecem armas – winchesters – que deflagram de três a mais tiros cadenciados.

O burro, assustado, deu um solavanco e Vicente Belém, ferido, susteve-se na sela para cair fulminado, metros adiante, próximo a um pé de Sambaíba [133, tisnando a outra margem do regato cristalino com o precioso líquido da vida.

Deixando o corpo do dono agônico, exangue, o animal em arrancada subiu a ribanceira e seguiu espantado, mancando, alvejado que também fora por um dos tiros.

Da tocaia, feita na moita, surgiram dois homens, os quais avançaram na direção de Vicente que, varado de balas e tombado, ainda folguejava.

Ao vê-los, Vicente tentou, mas não teve forças para gritar. Os ladrões reviraram-lhe o corpo e saquearam-lhe dos bolsos razoável quantia em dinheiro.

Estava consumada a primeira etapa de um latrocínio abjeto.

Prosseguindo na senda criminosa, os ladrões, não satisfeitos, fustigaram seus cavalos em desabalada carreira por um atalho no matagal e, friamente, tomaram a direção da casa da Fazenda de Vicente Belém, para onde foram com o intuito de roubar mais, assim que anoitecesse.

Lá pela estrada vinha o burro de Vicente, num chouto claudicante, pelo mesmo trajeto de sempre. Só iria parar quando chegasse na Pedra Grande, pois era estradeiro, há anos fazia aquele trajeto.

Assim que o burro passou em frente ao sítio Corrente, num aclive além do córrego, Ana de Melo saiu na porta e estranhou que o animal [134 estivesse ensanguentado, com os arreios, mas sem o dono.

Ana estava com menino novo, de resguardo, e ficou muito nervosa.

Tinha visto pouco antes alguém correndo, distante, no pantanal do brejo.

– Nesse leite tem água!

Não. Nessa água tem sangue, e sangue de gente. Não ouviram os tiros lá pra baixo?

– Cadê Vicente, siô? Corre e vai avisar a muié dele!

A Fazenda Pedra Grande estava a pouco mais de um quilômetro do Corrente, e o burro chegou primeiro que o aviso de Ana de Melo. Da parte superior da sua pata dianteira escorria sangue, descendo pelas pernas.

De ventas abertas, soprando, a alimária alcançou o alpendre à banda da casa da Fazenda Pedra Grande. Parou no mesmo lugar onde o seu dono sempre aportava – rente ao esteio que sustentava um dos lados do telheiro.

Os salteadores já haviam chegado e novamente estavam de atalaia, agora nas proximidades da casa do morto, onde a viúva D. Rosa Belém, alvoroçada, se movimentava, chamava por alguém, gritava, pois não bastasse a cena da chegada do animal sem o marido, notou que havia alguém nas proximidades da casa.

Seria miragem, alucinação?

Não. Eram mesmo dois vultos na tarde escura e úmida.

– Cavalos!?

Ufa! Que sorte! Vinha chegando um positivo com o aviso do Corrente. É um moço, que dá o recado: Vicente estava morto no córrego.

Foi Ana de Melo quem mandou avisar.

E vinha chegando mais gente…

Os assassinos perceberam a impossibilidade de despojar também a casa do finado e retrocederam pelo atalho para os lados da Vila do Duro, passando por fora, buscando a direção da Fazenda Beira d’Água.

Enlouquecida, D. Rosa Belém deixou alguém na casa e saiu em busca do corpo do marido.

Passou direto pelo sítio Corrente e foi descendo para o córrego.

Uma chuva fina e constante voltava a cair…

Atrás vinham os amigos.

– Manda avisar os irmãos de Vicente, pessoal!

Ganharam o córrego Corrente. Lá estava Vicente estirado, na beira, próximo ao arbusto. Torto, molhado, álgido, ensanguentado. Era apenas um cadáver na margem do riacho soturno, silencioso, lúgubre, naquele entardecer embaçado.

  1. Rosa dobrou-se sobre o corpo do marido gritando aflita, soluçando, suplicando-lhe que se levantasse. Qual nada! Estava morto mesmo.

– Quem matou? Por quê!?

Os matadores foram José Nunes Viana (Zuca Viana), casado com uma irmã da mulher de Vicente, que fazia par com o irmão Antônio Viana, como se soube no dia seguinte.

Um irmão e um sobrinho do morto chegaram e juntamente com alguns amigos, ensopados, ajudaram no transporte do corpo de Vicente até a Pedra Grande.

O cadáver seguia numa rede, alceada por uma vara, que vinha ombreada por dois homens. Pelo caminho, gotejava sangue por baixo, como que marcando o trajeto fúnebre.

Anoitecia.

O corpo de Vicente foi posto sobre uma cama, na sala da casa da Fazenda, até que se providenciasse o caixão. Alguém trouxe uma candeia e pôs na mão do morto. Era um breve ritual. Vicente veria a luz do outro lado da vida…

Enquanto velavam o corpo, comentavam:

– Vicente já vinha sendo tocaiado. Não é de ver que no dia anterior ele disse que iria até a Vila resolver uns negócios! Rosa lavou-lhe os pés e quando foi jogar a bacia d’água no terreiro parece ter visto vulto de gente correndo.

– Mas Rosa disse isso?

Tais afirmativas eram colocadas na boca da viúva, que recolhida num dos quartos da casa chorava desesperadamente.

Conjecturas e outros comentários atravessariam a noite triste.

Quanto aos matadores, iam longe. Haviam passado pela Fazenda Água Boa, pelo Santo Antônio e se aproximavam da Fazenda Beira d’Água, do Juiz Municipal Manoel de Almeida.

Entretanto, no mesmo trajeto, perto da Beira d’Água, estava a Fazenda Malheiro, de Josino Valente, onde os irmãos Viana chegaram e bateram na porta da casa chamando pelo Juiz Municipal Manoel de Almeida.

Noite nova, mas chuvosa, caliginosa. Josino havia se deitado ainda mais cedo e não quis se levantar, mas sua esposa D. Ana Rodrigues Valente levantou-se, olhou pela frincha, no batente da janela, e viu dois homens com seus cavalos, voltando de imediato para avisar ao marido, que disse não se chamar Manoel e nem ter compromisso com ninguém àquela hora.

E como não fossem atendidos, os assassinos apearam e foram armar suas redes no chiqueiro dos bezerros, por assim dizer invadindo a Fazenda.

Josino era um homem de bem e prole, grande fazendeiro, muito respeitado, e apesar de cunhado do Juiz, dele era adversário político.

A noite daquele sábado virou rápida. Rompeu a aurora plúmbea no Malheiro, tendo, no curral, o empurra das vacas leiteiras; no enxurdeiro, os bezerros apartados açoitavam.

Josino madrugou. Vinha tirar o leite, mas, para sua surpresa, deparou-se com Zuca Viana e o irmão, que impudentes, se adiantaram em justificar o erro ao terem pernoitado onde supunham ser a casa do Juiz. Depois foram direto ao assunto que os poria na berlinda.

Zuca foi quem começou a falar. Disse ter trocado uns tiros com Vicente Belém e que a história que contavam de Vicente ter bulido com sua mulher era inventada. Na verdade, Vicente o havia enganado na transação de um dinheiro. Nos estertores da morte, Cândido Ribeiro de Sousa, sogro de Vicente e de Zuca, deixaria razoável quantia em dinheiro ao morrer.

Então, resolveram apropriar-se de antemão. Mas o concunhado Vicente não lhe devolveu a parte do dinheiro. A bem da verdade, se vingava disso e não daquilo – arrematava em palavras amenas e se justificando.

De fato, os boatos haviam. Se tinham algum fundo de verdade nunca se soube. Pareciam invencionices, patranhas alimentadas nos ódios políticos do sertão, as quais Vicente sempre negou. Não era homem para aquelas coisas.

A rigor, pelos acontecimentos que se seguiram, ficou foi a dúvida se o assassinato não tinha motivação bem diversa. Aquelas histórias malversadas, caluniosas, pelo menos para uma coisa serviram – dar alguma justificativa ao crime injustificável.

Prudente e sério, Josino encerrou a conversa sem mais delongas:

– Como vocês estão vendo, aqui não é casa de Juiz nem fazenda Beira d’Água.

O domingo havia amanhecido sem Sol.

Os Viana reiteraram as desculpas pelo erro e rumaram para a Beira d’Água, logo adiante, onde chegaram em minutos. Num outeiro, perto de um pé de gameleira [135 e entre jaqueiras, estava a casa grande, feita de adobes e estacas de aroeira. Era a propriedade do Juiz Manoel de Almeida, que os aguardava ansioso, visto como se atrasaram em muito na chegada. E ali foram recebidos e hospedados…

O tempo se embruscava; o céu pardacento e carregado de nuvens como que se abaixava querendo afogar a terra. Pesado, tristonho, sombrio seria aquele dia, num chafurdar de mágoas no Vilarejo, sobressaltado e estarrecido com a notícia.

Todos comentavam a morte de Vicente. Os suspeitos do assassinato eram mesmo aqueles dois, que erraram pelo Malheiro e foram se esconder debaixo do teto do Juiz Municipal.

Aquele assassinato tinha as cores da cobiça, da cupidez sôfrega, da pilhagem banal, do interesse dos “vivos” no espólio deixado em 1913 pelo fazendeiro Cândido Ribeiro de Sousa, visto que Vicente morava bem na casa que foi do sogro, de quem, supunham, ganhou fortuna ainda em vida, pois dele era muito querido, além dos direitos hereditários que na partilha couberam à esposa e que poderiam se multiplicar com o esforço de Vicente Belém.

A boca miúda, os viventes de São José do Duro boatejavam: Zuca e o irmão eram apaniguados do Juiz. Deveras, partilhavam a facção do Partido do Governo, ao passo que Belém era gente de Abílio Wolney e seu pai. Aquilo cheirava a coisa bem planejada…

Cadê o Dep. Abílio Wolney?

Quando Vicente foi assassinado, o Cel. Abílio não estava na Vila.

Todavia ele chegou na manhã seguinte e rumou logo para a Fazenda Pedra Grande, como consignou em seu Diário:

 

Dezembro, 29 – Sábado. Vou pernoitar no Açude. Nesse dia, às 4 horas da tarde aproximadamente, assassinaram de emboscada na passagem do riacho Corrente a meu dedicado amigo Vicente Pedro de Belém, que recebera três tiros de Winchester – 1 na região renal direita, outro no peito direito e um outro no punho direito. Devido a velha intriga que o mesmo tinha com seu concunhado Zuca Vianna, a opinião aponta este como autor do assassínio. Enquanto viver não esquecerei o amigo.

 

Na Fazenda Pedra Grande, após o velório na noite molhada, lamurienta, Abílio Wolney e os que o seguiam somaram-se aos irmãos e chegados dos Belém, providenciando o ataúde e uma cova para o morto, que a viúva pediu fosse sepultado em frente à casa sede, há uns 50 metros, num plano sem mato, a céu aberto, ao lado da sepultura do seu pai Cândido Ribeiro. [136

 

Dezembro, 30 – Domingo. Chegando do Açude às 9 horas, tive notícia do ocorrido acima e imediatamente segui para fazer o enterro do meu saudoso amigo. Acompanharam-me João Teté, Antônio Carpina, Cândido, Alexandrino, João Francisco, Mestre Amâncio e Luiz da Cruz. Depois de estarmos na Pedra Grande, chegou um suplente de Juiz Mal. e escrivão (Nico e Justino) que fizeram o exame cadavérico. Às 5 da tarde teve lugar o enterro junto ao túmulo do meu saudoso amigo Candido Ribeiro. Deixei pessoas de confiança com a viúva D. Rosa, receosa de saque e regressei, chegando aqui às 7 ½ da noite, encontrando meu Pai que me esperava.

 

Depois foi providenciado o carneiro de Vicente, um jazigo com um cruzeiro alto na frente. E assim, no subir e no declinar do astro-rei, a sombra do madeiro seria um relógio na monotonia de uma saudade sem fim…

Não tendo mais Vicente, D. Rosa havia levado para a porta da sua casa a catacumba do esposo, de modo que todas as manhãs a veria ao lado da do pai – dois seres tão amados. Ele estaria ali, mesmo que fosse num sepulcro caiado, como era, altaneiro, doloroso.

Nos dias longos, enxergá-los-ia ao lusco-fusco, no vulto tumular, e lá iria depor uns ramos silvestres, e flores, com a prece da Ave-Maria, de quem sempre fora mui devota.

Aquela cruz alta, de aroeira bem lavrada, era um estandarte ignominioso, como foi o do Cristo; era uma baioneta fincada na terra, ferindo-a para sempre, até quando Deus quisesse… E lá ainda está, para as noites de plenilúnio, frenteando as tumbas luarizadas, outrora alvinitentes, depois dobrando o tempo, impassíveis, na surdina merencória de uma tristeza que duraria até quando D. Rosa também partisse. [137

Vicente era bom; era do bem. Homem simples, correto, dedicado ao amaino da terra, à criação do seu gadinho. Ele, seus irmãos Mamédio, Theodolino e o sobrinho Olympio eram trabalhadores honrados, chegados dos Wolney, por quem eram tidos na consideração de parentes consanguíneos.

E a Justiça da Vila? Nada de prisão, nem de Inquérito para apuração do crime, pois da diligência do suplente de Juiz Municipal na Fazenda Pedra Grande – o Juiz mesmo estava na fazenda – nunca se soube se algum papel houve, tendo tudo sido apenas pró-forma.

Depois que nunca se teve notícias de diligência do Delegado Municipal, fiel cabo eleitoral do Partido Democrata e pronto inquisidor, desde que a vítima fosse um eleitor ou correligionário dos Wolney.

Sem processo nenhum, Zuca Viana com o irmão estavam na Beira d’Água sob a égide de outro escandaloso crime, o de ‘favorecimento pessoal’, já que há sete dias comiam e dormiam na casa do Juiz, onde estavam homiziados, não obstante as reclamações dos parentes do morto no início do mês de janeiro de 1918.

Passada a semana, um encarregado do Juiz cruzava a fazenda Santo Antônio com os homicidas, buscando Palma, hoje Paranã. Quanto a Zuca, levou consigo a esposa e quem mais tinha.

 

Rosa Belém, viúva do morto, narraria esses fatos depois:

 

E como fosse noite chuvosa e escura, os assassinos tomaram a porta do fazendeiro Josino Valente, cunhado do dito Almeida e que reside perto da fazenda deste e aí chamou diversas vezes pelo nome de Manoel d’Almeida e como o dono da casa não aparecesse pernoitou ele em uma casa aberta e só pela manhã do dia seguinte conheceu que estava em casa de Josino, ao qual apresentou contando o seu engano assim como o crime que havia praticado, seguindo imediatamente para a casa do Senr. Almeida, a quem deu conta do que havia feito. Sabe também que o dito Juiz tomou parte na deliberação do assassinato, mandou guiar o assassino por desvios a fim de que os parentes e amigos da vítima o não apanhassem. Que desse crime nunca se fez processo e somente meses depois mandaram intimar a ela informante para dar bens a inventário. [138

 

Diria mais a viúva que:

 

[…] com relação ao assassinato de Vicente Belém, pode afirmar terem sido cúmplices neste assassinato o Juiz Municipal e o Coletor Estadual desta Vila; que isso afirma porque sabe que na entre-véspera da morte de Vicente Belém, um dos assassinos do aludido seu marido havia passado a noite em casa do Senhor Sebastião de Britto, Coletor Estadual a que se refere, combinando sobre a morte do mesmo Vicente; que foram assassinos José e Antônio Vianna; que José e o Coletor desejavam roubar seu marido, um no que ele tivesse então e o outro no que ele deixasse para ser inventariado; que ainda corrobora a afirmação que acima fez o fato de haver José Vianna, conhecido por Zuca, ido à noite do dia seguinte ao do assassinato de seu marido à casa de Josino Valente, onde perguntou por Manoel de Almeida, Juiz Municipal, a quem encontrando relatou o seu crime; que esse Juiz em vez de prender o criminoso ainda lhe deu fuga, pois que lhe arranjou um guia para o levar a Santo Antônio, fazenda do Cel. Joaquim da Silva; que o guia cujo nome não sabe, não levou o assassino propriamente até Santo Antônio e sim às extremas desta Vila; que Sebastião de Britto e Manoel de Almeida com

seu marido não eram inimigos de se deixarem de saudar, mas que não se gostavam porque seu marido acompanhava outra política; que soube haver João Francisco de Carvalho dito a seu amigo, que não sabe o nome, estar Sebastião de Britto e Zuca combinados para assassinar Vicente Belém; que ainda pode dizer ser verdadeira a imputação da cumplicidade das autoridades aludidas, visto até hoje não se ter feito o processo respectivo; que deu para ser inventariado tudo quanto seu marido havia deixado e que mesmo assim o Coletor e o Juiz, mais especialmente o Coletor, como lhe disse Aristóteles Leal, não se tinham dado por satisfeitos […].

Que o assassino Zuca Vianna em tudo foi auxiliado pelo Senr. Manoel d’Almeida, então Juiz Municipal do Termo, que fornecera aos assassinos até os cartuchos, e, depois do assassinato e de ter saqueado os bolsos da vítima, que conduzia algum dinheiro, e tentarem roubar-lhe a casa, retirou-se para a fazenda Beira d’Água onde residia o Juiz Almeida. [139

 

Diante do fatídico, os parentes de Belém buscaram uma posição em Abílio Wolney, que os observou que a situação estava com os adversários, nomeados pelo Governo, que lhe negavam tudo. No mais, a legislação previa que o processo de inventário sumário não carecia de advogado. A própria viúva faria o requerimento e a Justiça decidiria.

E assim foi feito de início. Era obedecerem às leis, “mesmo que injustamente aplicadas, para que os homens injustos não desobedecessem às leis justas”. E vão nessa filosofia, mas o certo é que o Coletor e o Juiz decidiram ‘empacar’ o arrolamento, certos de que Abílio entraria no circuito.

Viremos a página no tempo, enquanto as coisas fermentam…

Começa o ano de 1918.

No Diário, escreve Abílio Wolney:

 

Janeiro, 01 – Terça. Entra o novo ano e, apesar de notar um desequilíbrio mundial assinalado pela conflagração que se propagou a todo o universo, tenho fé de poder continuar nos trabalhos encetados; as nossas fontes de renda já são mais fortes, não precisamos incomodar tanto aos nossos sócios capitalistas. O programa deste ano é o seguinte:

 

Janeiro – Concluir a limpa das canas, plantar mandioca e fazer latada para as videiras. Fevereiro – Plantar feijão e moer um pouco para aproveitar o mercado. Fazer a ponte do

Marimbú. Março – Concluir o plantio do feijão e começar tirar madeira para o Açude da água de regra e lenha para moagem. Abril – chegam as madeiras para a tirada da água,

a lenha e madeira para tanque. Maio – Fazer o açude e tirar a água. Junho, Julho e Agosto – Moer cana e empreitar derrubadas. Setembro – Fazer farinha e se for possível ir ao Rio. Outubro – Preparar terras para o plantio de cereais. Novembro – Capinas e plantas. Dezembro – Conclusão de plantas e capinas.

 

Janeiro, 02 – Quarta. Wolney volta do Duro junto com o professor João Corrêa, almoçam aqui e seguem para o Açude. Compadres Domingos e João Rodrigues e Salvador Rodrigues estiveram aqui conversando sobre o assassinato de Vicente Belém.

 

Janeiro, 03 – Quinta. O João de Mello aqui esteve tratando do assassinato de Vicente e receoso de ser perseguido pelos parentes da vítima.

 

Janeiro, 04 – Sexta. Aqui vieram tio Francelino, meu Pai, minha Mãe, Dr. Abílio, Alzira, Diana, Dianinha Nepomuceno, Palmyra, Wolney e o professor João Corrêa. À tardinha, chegou Norberto Gonçalves. Abílio e Alzira pernoitaram, os demais voltaram. Ontem à noite em altercação o Mestre Amâncio deu uma facada em Floro, filho de Luiz Pedreiro. Amâncio está oculto, as autoridades fizeram corpo de delito.

 

Janeiro, 06 – Domingo. O Dr. Abílio passa para o Santo Antônio pela manhã a convite do Cel. Silva; com ele vai José Gomes. Wolney volta do Açude. À tarde esteve aqui o compadre João Rodrigues e informou-me que o Zuca seguiu do Santo Antônio em direção a Palma, eu porém penso que tenha ido para Conceição dos Araújos.

 

Janeiro, 09 – Quarta. Meu Pai passou para o Duro e eu fui passear em casa do compadre Domingos Francisco, de tio Francelino e na Viela; dali vim com meu Pai até aqui onde encontramos Benedito Pinto e Josino que tinham vindo conversar comigo acerca do caso Zuca – Vicente.

 

Janeiro, 18 – Sexta. Segui com a Constantina para o Rio da Conceição a visitar os pais dela e ali pernoitamos.

 

Janeiro, 19 – Sábado. Pela manhã visitei os moradores do Rio da Conceição e, às 3 horas da tarde dali saí chegando aqui às 8 da noite.

 

Janeiro, 28 – Segunda. Candinho e o Professor João Corrêa passam do Açude para o Duro. Coquelin passa da Conceição para o Açude. Recebo carta de João Belém pedindo-me informações acerca do assassinato de Vicente Belém. O Mestre Amâncio, acompanhado de Joaquim Cavalcante e Felippe, chegou aqui.

 

Fevereiro, 01 – Sexta. Plantamos um pouco de cana forrageira, limpamos os mudubins e começamos limpar as parreiras. Josino veio procurar remédio para a filha, fui

com ele do Açude para consultar ao Dr. Abílio, criei as fórmulas e ele voltou.

 

Fevereiro, 12 – Terça. Voltei do Nogueira e chegando no Duro às 9 horas encontrei o Cel. Raymundo Augusto Maranhão, emissário eleitoral do Dr. Bulhões e estive com ele até às 4 da tarde e cheguei aqui às 5 ½.

 

Fevereiro, 13 – Quarta. Volto ao Duro para estar com o Maranhão, que requereu certidão da lista dos eleitores ao Juiz Municipal.

 

Fevereiro, 15 – Sexta. Desci para ferrar crias no Nogueira. Passei no Duro para ver meus Pais e filhos. Voltei do Nogueira para pegar animais a fim de continuar o campeio.

Wolney foi para o Duro. Fiz uma corda de laçar gado.

 

Enquanto isso, na capital de Goiás, centro das decisões administrativas, o clã Caiado se reveza no poder.

No ano de 1917, o Des. João Alves de Castro, bem integrado na família Caiado, chega à Presidência do Estado para um mandato que vai até 1921, graças às forças de Eugênio Jardim e do Deputado Totó Caiado, presidentes da Comissão Executiva, que influenciam diretamente no conchavo de apoio do governo federal. O Cel. Eugênio Jardim será daqui a pouco o sucessor de Alves de Castro na presidência do Estado.

 

João Correia de Melo, homem altruísta e determinado, um dos primeiros professores da Vila do Duro e que formou gerações. Era casado com Mirêta Wolney, filha de Abílio Wolney. Esteve junto com o sogro em todos os momentos de resistência, como nos relatos deste Diário. Dianópolis deve muito a esse insigne mestre, que mais tarde seria também farmacêutico prático. (Foto de 29.09.1916 constante do livro As Raízes e os Principais Eventos que deram Origem a Dianópolis, de Voltaire Wolney Aires) – Foto: livro

 

 

[132 Ana Messias de Valença, mulher de João de Melo.

[133 Há quem diga que Vicente caiu foi próximo a um pé de ‘bananeira brava’, nome com o qual o sertanejo designa um certo arbusto, típico da região.

[134 O burro de Vicente era escuro, quase preto, ancas cheias, pelo liso e tinha até nome: ‘Retroge’.

[135 A gameleira ainda existe no local. Quanto à casa, só há no local o aterro da sua base quadrangular, e alguns tocos de estacas de aroeira, que permanecem ligados à terra depois de cortados.

[136 Cândido Ribeiro de Sousa era casado com D. Tereza e havia falecido por volta de 1913, na prévia mas antes da instalação da oligarquia no Poder Estadual. Era fazendeiro, com rozoável fortuna para a época. Provavelmente teria sido Agente Fiscal na Fazenda Matão – passagem de tropeiros para a Bahia e Nordeste – que ficava adiante do atual município de Rio da Conceição (TO). Estando assentado na porta da casa do seu Posto em Matão, quando conversava com alguém, de repente caiu da cadeira: Acabava de sofrer um infarto fulminante. Deixou os filhos Ana Ribeiro (casada com Zuca Viana), Maria Madalena Ribeiro (conhecida como Preta e casada com Cirilo), Josepha Ribeiro (casada com José de Marciano) e Rosa Ribeiro de Belém (casada com Vicente Pedro Belém). Tamanho era o prestígio do morto que, naqueles tempos, o Padre que vinha celebrar missa em Missões atendia ao pedido da viúva Tereza e se dirigia até a fazenda Pedra Grande, onde rezava junto ao jazigo de Cândido Ribeiro, ao lado do qual, em 1919, foi feito o do genro Vicente Pedro Belém.

[137 D. Rosa morreria anos depois no sertão, para os lados da divisa com a Bahia, depois de ter vendido a sua parte na Fazenda Pedra Grande. Morreu muito pobre e não se sabe onde ela foi sepultada. Do seu casamento com Vicente Belém não houve filhos, talvez pela morte precoce do marido.

[138 Depoimento de D. Rosa Belém nos Autos do Processo em Juízo, no dia 07.01.1922 (Arquivo Histórico Estadual em Goiânia e cópias dos originais em poder do autor).

[139 Idem.

 

[Continua na próxima postagem quinzenal, com a publicação do Capítulo XI

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