PAINEL CULTURAL

DR. ABILIO WOLNEY AIRES NETO

‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [XVI – ABÍLIO WOLNEY NARRA A CHACINA DE 1919

[Em diferentes edições e capítulos, o JORNAL CIDADE publica O DIÁRIO DE Abílio Wolney, livro do articulista Abilio Wolney Aires Neto, lançado pela editora Kelps (Goiânia-GO.), em 2009

Abílio Wolney retratado em capítulos nesta coluna – Fotos: livro

 

[XVI – ABÍLIO WOLNEY NARRA A CHACINA DE 1919

 

O tempo passa. Já são mais de dois meses da chegada da Comissão, com evidente atraso na conclusão dos ‘trabalhos’. A força policial está ávida para a investida e pronta para consumar a missão.

O Presidente do Estado, Des. João Alves de Castro, pede licença e, como era de costume, vai para o Rio de Janeiro gozar com os seus, deixando a dúvida se teria ido tratar-se, descansar ou precisamente ver-se isento perante a opinião pública do que seria levado a efeito pela Comissão que nomeou.

Numa peça escrita e inédita, relata Abílio Wolney o que se sucedeu a partir de então. [217

A propósito, como anotado pelo autor no livro No Tribunal da História, Abílio Wolney se dizia traído por Bernardo Élis, que do bloco de cartas manuscrito por volta de 1955/6, num pensionato, ao lado do Liceu de Goiânia, nada aproveitou em seu livro O Tronco, senão a má narrativa do esconderijo dele Abílio numa estiva de farinha, por ocasião do ataque da polícia dos Caiado.

Vamos ao documento, ao que tudo indica oficial, já que dirigido ao Prefeito de sua Terra, Veríssimo da Mata, cujo teor é o seguinte:

 

Senhor Prefeito,

[omissis]

A HECATOMBE DE 1918–19

Os Caiado dominavam então na política do Estado. Abílio Wolney [218 havia feito contra eles forte campanha pelo “ESTADO DE GOIÁS”, periódico de sua propriedade, montado na Capital do Estado. Vendo, porém, que naquele tempo sua atuação seria improfícua quão perigosa, entregou a direção do periódico a seus amigos, fechou seu escritório de advocacia e voltou ao Município de sua residência abandonando a política por completo, voltando suas vistas para os problemas locais.

Em complemento à ideia de estradas carroçáveis de seu pai entendeu de abrir uma estrada de automóvel para Barreiras.

Organizou com seu dito pai uma sociedade para fins industriais e de lavoura.

Começou construindo em 1915 a ponte, sobre o Rio Ponte, com capacidade para passagem de veículos pesados; essa ponte construída sob sua direção pessoal ainda está perfeita, servindo ao público.

Depois fundou a fazenda de lavoura “Buracão”, montando ali o primeiro engenho de ferro para moer cana de que fez grande plantação e sua lavoura prosperou.

Até 1918, o pessoal de trabalho era numeroso e seus adversários locais começaram a denunciá-los de estarem formando reduto de cangaceiros, e lá veio uma Comissão chefiada pelo bacharel Celso Calmon Nogueira da Gama (nome da dinastia tão grande quanto sua perversidade) e prestigiada por 50 policiais.

Sabedora da aproximação dessa escolta sinistra, toda a família Wolney retirou-se para a fazenda Buracão, alojando-se nos seus vastos aposentos e preparando-se para a defesa, se necessária.

A Comissão Celso marchou até chegar sem o menor embaraço, quando podia ter sido dizimada. Mas os Wolneys queriam um juiz que apurasse a verdade e assentaram de não lhe criar o menor entrave.

A Comissão, chegando, manifestou logo seus propósitos de desrespeito e arbitrariedade, ocupando sem entendimento algum com seus proprietários, que estava há 7 kilometros de distância todas as suas propriedades desta cidade, então Vila.

Tratou de abrir Inquérito em segredo de justiça.

Durante esse intervalo reconheceu que sua força seria insuficiente para atacar a fazenda Buracão e, para cumprir as ordens que trazia, que deviam ser premiadas com uma cadeira no Tribunal Superior do Estado, lançou mão do ardil:

Conhecedor das ideias de defesa exclusivamente dos Wolneys, certo dia, pela manhã, acompanhado do Oficial de polícia Catulino, do seu Escrivão e de um Soldado se dirigiu à Fazenda onde foi recebido com a distinção que devia merecer um comissionado daquela ordem; lá almoçou com a família, palestrando afavelmente e incutindo no espírito de todos que a missão que trazia era de apurar a verdade e que aquela visita, com o acolhimento respeitoso que tivera, dos trabalhos que presenciara, lhe certificavam da injustiça das acusações.

No seu retorno, pela tarde, foi acompanhado por diversos membros da família até perto desta cidade; estes, sobretudo, retornaram à fazenda encantados com a bondade do Juiz e exigiram de Abílio Wolney a dispersão do seu pessoal de defesa, o que este fez constrangidíssimo, pois reconhecia a falsidade das afirmações.

Logo que o Juiz teve certeza de que a defesa da fazenda estava desorganizada, preparou o ataque, que se realizou pelas 4 horas da manhã do dia 23 de dezembro de 1918, no momento em que o Cel. Wolney, despreocupado, partia para uma caçada.

A fazenda estava indefesa. Ao cercá-la, dois disparos apenas se ouviram e foram aqueles com que a força, no pátio da casa, prostraram o Cel. Wolney e seu companheiro de caça João Caboclo!

O autor destas linhas escapou metido num grande depósito de farinha; todos os mais foram presos, homens e mulheres.

Depois destas, seguiram-se as prisões de todos os homens de destaque desta localidade. Os principais foram metidos em um tronco de jatobá; outros em quartos estreitos e infectos, e nessas prisões todos eles foram fuzilados a tiros de revólver no ouvido; o dia que o POVO revoltado reclamava os prisioneiros.

Depois de algum tiroteio, os covardes correram, deixando os cadáveres insepultos.

Os fuzilados no tronco foram os Majores João Baptista Leal, Benedito Pinto de Cirqueira Póvoa, João Rodrigues de Santana, o estudante Wolney Filho, o ourives Messias Camello, os jovens Salvador Rodrigues, João Póvoa e Nilo Rodrigues [219; Oscar Leal, filho de João Leal [220, foi assassinado com um tiro de revólver na prisão em que se achava na casa do Oficial Antônio Seixo de Brito.

Numerosos outros assassínios foram perpetrados, em número de 71 pelo interior do Município!

Tudo isso a política do Caiadismo aprovou e ainda premiou.

[omissis]

Terminou assim a epopéia 18–19; os foragidos começaram a voltar às suas propriedades arruinadas; deles, o último foi Abílio Wolney, que chegou a esta cidade no dia 8 de Outubro de 1938. [221

***

 

Sobre o mártir Joaquim Ayres Cavalcante Wolney Filho, o Wolneyzinho, nascido em 29.22.1894, parecia indiferente à política e se dava com todos na Vila. Dizem que ele, malsaído da adolescência, fazia lembrar o pai, mas tinha um semblante nazareno, que lhe fazia transparecer a alma grande de que era portador. Bonito, intelectual, atencioso com os mais velhos, educação nata e de fino gosto musical, vivia à frente do seu tempo e lugar. Sua vocação era a medicina e almejava o grau universitário.

Encaminhado pelo pai ao Rio de Janeiro a fim de cursar, como de fato cursava o 3º ano da Faculdade de Medicina, tinha como colega de quarto Pedro Ludovico Teixeira, conforme narra este em seu livro de Memórias:

 

Morei dois meses, também, na Rua Mariz e Barros, onde foram meus companheiros de quarto os goianos Otávio Abrantes e Wolney. Otávio era impetuoso, boêmio e corajoso. Wolney era calmo, delicado e de uma aparência Angélica. […] O Wolney, terminados os seus estudos, seguiu para São José do Duro, hoje Dianópolis. Morreu golpeado a sabre, com oito membros da sua família, presos como reféns pela polícia de Goiás, que estava em luta com o Cel. Abílio Wolney. Eram adversários políticos da situação dominante, o Caiadismo. Nove pessoas foram assassinadas fria e cruelmente pelo tenente Uysses, Oficial da Milícia Goiana. [222

 

E assim Wolneyzinho morreu, aos 23 anos de idade, naquele sequestro a preço de vida, no pelourinho de um tronco. E justamente quando veio do Rio passar as férias com a família.

O sudário negro cobria o rosto de inocentes na terra de São José.

 

Sobrado construído por Abílio Wolney em 1902. (Acervo de Anisiana Jacobina Aires Sepúlveda (Nizinha). Fotografia de capa da 1ª. edição do livro Abílio Wolney Suas Glórias Suas Dores, de Voltaire Wolney. Aqui os reféns foram sacrificados em 1919. A edificação foi demolida em 1951.

 

Wolneyzinho, quando cursava o 3º ano do curso de Medicina no Rio de Janeiro. Veja a respeito no livro A Chacina Oficial, do autor.

 

Través do Sobrado construído pelos Wolney em 1902. (Acervo de Liberato Aires Cavalcante)

 

Os mártires João Rodrigues de Santana e seus dois filhos, Salvador (22 anos) e Nilo Rodrigues de Santana (que morreria aos 16 anos), mortos no tronco em 1919. Abaixo, a viúva Ana. Mataram também Nazário do Bonfim, de 19 anos, camarada da família (Fotografia do acervo de Joaquim de Abreu Valente – Quinca).

 

[217 Trata-se de uma peça rara, descoberta pelo autor em 2005, no acervo de Noélia Costa Póvoa. Abílio Wolney havia retornado a São José do Duro em 1938. Em 1939, o município passou a se chamar Dianópolis. Feito em 1940 – portanto produzido mais de 20 anos após os acontecimentos de 1919 – é o único documento no qual Abílio Wolney narra, dentre outras coisas, a “Chacina de 1919”. Um manuscrito que ele teria dado a Bernardo Élis em meados de 1950, contando aquele episódio, e foi cordialmente sonegado ao autor nas duas visitas que fez ao Escritor em 1992, sob a evasiva de que o teria emprestado a outro escritor que o extraviara. Aliás, esse documento que, sendo de 10 a 15 dias anterior àquele que Abílio Wolney teria redigido, num pequeno bloco de cartas, ao Escritor goiano, parece mais fidedigno, já que feito com vagar, quando aquele outro foi manuscrito em uma Pensão, próxima ao Liceu de Goiânia, de certo modo improvisado e posto com aquilo que ele se lembrou de improviso, sem condições de tempo para maior reflexão – pois o fizera numa noite naquele pensionato, sem ter acesso a anotações pormenorizadas, que sempre guardou em arquivo no velho Duro, não obstante a destruição de diversos documentos seus pela milícia da oligarquia na Revolução de 1919. Agradeço à estimada conterrânea e prima Noélia Costa Póvoa Araújo, pesquisadora que me cedeu os originais deste documento. Noélia Póvoa é uma dianopolina ilustre. Cursou o Primeiro e o Segundo Grau (Magistério) no Colégio João d’Abreu. Aprovada no Concurso Público para Professora do seu Educandário não assumiu de início o cargo, sendo depois contratada como professora primária. Em Brasília trabalhou no ambulatório médico da BENECAP em 1965. É filha de outro grande homem de Dianópolis, o ex-prefeito João Joca Leal Costa, de quem herdou esse valioso documento. Atualmente faz parte das seguintes Instituições: 1) Sub-Comissão Municipal de Resgate à História Viva do Tocantins; 2) Conselho Municipal de Turismo de Dianópolis; 3) Tesoureira da Associação Dianopolina de Artesãos; 4) Secretária do Clube da Melhor Idade “São José”. É casada com o Dr. Wilson Antônio de Araújo (Candinho), este que, ao longo de 27, anos exerceu o Ministério Público como Promotor de Justiça, depois promovido a Procurador de Justiça, em cujo cargo aposentou-se. Noélia é autora de artigos e poemas, alguns já editados, e dona de importante acervo histórico em documentos antigos.

[218 Aqui Abílio Wolney fala na terceira pessoa do singular, mas referindo-se a si próprio.

[219 Eram irmãos e filhos do também mártir Benedito Pinto de Cirqueira Póvoa (nota do autor).

[220 João Baptista Leal morreu no tronco e o seu filho menor Oscar Leal, logo em seguida.

[221 O Juiz de Direito Celso Calmon Nogueira da Gama foi processado perante o antigo Superior Tribunal de Justiça do Estado pela morte do Cel. Wolney e dos sacrificados no tronco. Com ele foram processados também o seu Promotor Deocleciano Nunes, soldados e outros Comissionados, Celso Calmon chegou a ser preso preventivamente na antiga Capital de Goiás e depois condenado pelo Tribunal do Estado pelos fatos desencadeados com a sua ‘Comissão’. No livro O Barulho e os Mártires são transcritas peças da Ação Penal pública movida contra o referido magistrado.

[222 TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Memórias, 2ª edição. Livraria e Editora Cultura Goiana, Goiânia, 1973.

 

[Continua na próxima postagem quinzenal, com a publicação do Capítulo XVII

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