‘O DIÁRIO DE Abílio Wolney’ [XIII – A EXPEDIÇÃO SAI DA CAPITAL – A VIAGEM
[Em diferentes edições e capítulos, o JORNAL CIDADE publica O DIÁRIO DE Abílio Wolney, livro do articulista Abilio Wolney Aires Neto, lançado pela editora Kelps (Goiânia-GO.), em 2009
XIII – A EXPEDIÇÃO SAI DA CAPITAL – A VIAGEM
No dia 31 de julho de 1918, o Juiz Celso Calmon Nogueira da Gama galgava o pórtico do palácio do governo, na capital, aparamentado com um paletó casaco inglês. Ao entrar, foi recebido pelo cerimonial do Presidente João Alves de Castro que, em gabinete, aguardava-o no Palácio Conde dos Arcos – sede administrativa da antiga Presidência do Estado.
Sendo o Presidente egresso do Tribunal de Justiça do Estado, onde tinha assento na cadeira de Desembargador – de momento na senda política – surgiu breve discussão com o Juiz comissionado sobre a competência ou não da justiça estadual para julgar o crime de desacato e coação às autoridades de São José, inclusive pela conexão com eventual sonegação de tributos, restando debatida ainda serem ou não afiançáveis os delitos, para o efeito do procedimento almejado.
– Parece tratar-se de crime político, da competência da Justiça Federal – falou preocupado o Presidente.
O Magistrado, todavia, redarguiu serem inafiançáveis os delitos pela soma das penalidades a aplicar, sendo o processo e julgamento dos crimes políticos, que interessam aos Estados, da competência da justiça local, porque apesar de revogado o
art. 83 da lei 221, de 1908, apenas o fez implicitamente, nada dizendo a respeito, quando o devia fazer como lei interpretativa que é nesse ponto, sendo corrente que desde que não haja a intervenção armada da União, nos casos que interessam aos poderes dos Estados, a competência é da justiça local. [183

Antigo prédio do Tribunal de Justiça de Goiás – Cidade de Goiás [184.

Frente do Palácio Conde dos Arcos, antiga sede do Governo na cidade de Goiás. Ao fundo, Igreja da Boa Morte (arquivo pessoal).

Lateral direita do antigo Palácio do Governo. Ao fundo, Igreja da Boa Morte (arquivo pessoal).
Exigindo rigor no cumprimento da lei, o Presidente Alves de Castro passou-lhe às mãos as representações de Manoel de Almeida e Sebastião de Brito e José Martins, bem como o decreto da sua nomeação e algumas cartas particulares, sendo uma do Cel. Casimiro Costa.
A lei era o Governo. O futuro, o Tribunal de Justiça, onde Celso Calmon, mais cedo ou mais tarde, seria Desembargador.
Calmon, valorizando-se, ponderava que o Duro seria um grande desafio. Era longe e um território sob o domínio do ex-Deputado Wolney, inimigo do Estado. Diria, mais tarde, que a sua comissão era de
[…] imparcialidade, era de Juiz alheio às paixões locais, era de rigorosa justiça, arrematando que essas palavras ouviu sempre do Exmo. Desembargador João Alves de Castro, do Senador Eugênio Jardim e do Deputado Ramos Caiado (sic). [185
A situação era sintomática. No prédio do Tribunal de Justiça mesmo o juiz não passou desta vez. Celso Calmon era natural do Espírito Santo, onde, num período de turbulência, foi chefe de polícia.
Ainda sem prestígio na carreira em Goiás, alguém lembrou do seu autoritarismo boçal, com o que foi achado a dedo pela oligarquia. Queria mostrar serviço. Viera deportado para Goiás, espirrado da “Revolução de Colatina”, onde tomara armas contra o governo no seu Estado, por ter discordado do tratamento especial que as autoridades da sua terra davam aos mineiros, investindo-os em cargos públicos razoáveis, em detrimento dos filhos da região.
O Magistrado era deveras inusitado. Como Juiz, como Chefe de Polícia e mais tarde (quando o Governo o promoveu ao cargo de Desembargador), [186, seus atos eram comentados como partidos de um indivíduo intolerante, arbitrário e, às vezes, burlesco. [187 Quem o conheceu dizia parecer um régulo, a cultuar rigoroso formalismo e solenidade nas audiências, entronizado, consagrando o princípio máximo da autoridade. Era o tipo talhado para trilhar rumos preestabelecidos, para reforçar, a coice e a tiro d’armas, a soberania da “lei”.
O Major do Exército, Álvaro Guilherme Mariante, em Relatório ao Ministro da Guerra, narraria, em 1919, o seguinte:
[…]A cumplicidade do governo do Estado nos acontecimentos que se vão desenrolar começa a ser patenteada na escolha do pessoal que constituiu a comissão.
É necessário, pois, entrar em detalhes sobre as pessoas que dela fazem parte. O Juiz Doutor Celso Calmon Nogueira da Gama é Magistrado exorbitante e violento. Disso dão
completo testemunho os tópicos números vinte e seis e trinta e um (páginas setenta e nove, cento e um, cento e onze a cento e vinte e um) da meticulosa exposição que nos foi apresentada pelo doutor Mandacaru Araújo e o depoimento (número trinta e dois, páginas duzentos e trinta e três) do soldado Jose Rodrigues da Cruz, além de muitas outras informações que nos foram prestadas.
Tais documentos valem pela mais completa psicologia do Juiz Calmon. E não só exorbitante e atrabiliário é o referido Juiz; é também ébrio e ébrio contumaz como se vê dos tópicos citados. E que este Juiz foi especialmente escolhido em Goiás por inimigos de Abílio, demonstra-o a carta do Senador Eugênio Jardim (número vinte e quatro, página setenta e três) cuja ortografia, como a de todos os documentos de que tiramos cópias, foi respeitada com a máxima fidelidade.[…]
Para a jornada da Comissão, os aprestos necessários. Carregavam, dentre outras coisas, barracas, duas canastras com guarnições para cama, três cargueiros que transportavam munições, armas e gêneros alimentícios.
Naquele 31 de julho de 1918, encerravam-se os trabalhos do período legislativo e a via pública em Goiás assistia a um movimento incomum. Do local onde ficava a Assembleia Legislativa, o povo se engrossava rumo à Praça da Igreja do Rosário [188. Do outro lado da cidade estava o Palácio Conde dos Arcos, na Rua da Fundição, junto à Igreja da Boa Morte, tendo a Força Pública Estadual, com sua banda, para a revista e continência de praxe.
Como que destacado, um Pelotão de dez praças e um Oficial de polícia, cuja tropa engrossaria o contingente de 40 homens, que, dias antes, o Governo havia feito seguir para o Norte, a fim de atender no Duro.
Para Promotor de Justiça o Presidente nomeou o agrônomo e advogado provisionado, Dr. Francisco de Borjas Mandacaru e Araújo, um jovem baiano, amorenado, alto e esbelto, usando um cavanhaque, que quase lhe ocultava na fisionomia séria a natural simplicidade e moderação de que era portador.
Consta do mesmo Relatório do Exército que
[…]O doutor Francisco Mandacaru foi o escolhido para funcionar como promotor. A atitude por ele assumida junto ao Juiz Calmon tornou-o amigo de Abílio Wolney e a mais
poderosa testemunha da tragédia de São José do Duro. Entretanto, ao ser escolhido para trabalhar no processo, Mandacaru era pessoa suspeitíssima para o exercício de uma missão de justiça em que era acusado Abílio, pois traços de inimizade separavam os dois cidadãos.
No tempo em que Abílio labutava na imprensa, o doutor Mandacaru foi alvo de campanha que o primeiro lhe moveu. Daí a desafeição entre eles existente (número trinta e três, página noventa e três). E disso tinham plena ciência não só o Juiz Calmon como o próprio Governo do Estado. Era pois um inimigo do acusado que vinha servir como Promotor no processo que instaurava.[…]
Para Escrivão foi escolhido Guilherme Ferreira Coelho, Escrivão de Polícia da Secretaria de Segurança Pública.
O comando geral da Força tinha as funções exercidas pelo 1º Tenente Antônio Seixo de Britto. Os diversos destacamentos estavam sob as ordens dos 2º Tenentes Benedito Avelino de Jesus, Catulino Antônio Viegas, Ulysses Jaime, José Joaquim Dantas e José Francisco de Salles, selecionados com um “certo critério” indicado na sede do Batalhão, na Cidade de Goiás.
Segundo o Relatório do Ministério da Guerra:
[…] Uma outra personagem que representava papel saliente na Comissão e que depois se tornou célebre nos sucessos do Duro é o alferes da polícia goiana Ulisses de Almeida. Este indivíduo era fiscal da intendência na capital do Estado quando foi nomeado alferes da polícia especialmente para vir a São José do Duro. Ulisses, como declara o Deputado Estadual coronel João Batista de Almeida, chefe político situacionista em Santa Maria de Taguatinga, é criminoso no estado do Piauí, de onde fugiu para Goiás; por influência do Deputado Federal Antônio Ramos Caiado (inimigo de Abílio) foi nomeado alferes para vir ao Duro e, ainda mais, antes de sair da capital declarou que ao regressar traria no alforge a cabeça de Abílio Wolney.
Dessa declaração teve conhecimento o próprio Governador do Estado, doutor João Alves de Castro (número trinta e quatro, página cento e quarenta e nove; número trinta
e sete A, página cinquenta e um e número quarenta e um, cento e cinquenta e sete). E os acontecimentos vieram posteriormente confirmá-la. Além desse alferes, acompanhavam ainda a comissão com uma força de cinquenta praças, o tenente Antônio Seixo de Brito e os Alferes Benedicto Avelino de Jesus, José Francisco Salles,
José Dantas e Catulino Viegas. Destes, apenas o penúltimo não foi ao Duro.[…]
Vimos um ofício do secretário do Governo do Estado a um dos oficiais da polícia; nele se declarava que a força que era posta à disposição do Juiz Calmon, cumpriria todas as ordens que dele recebesse. [189
Era pois com tais elementos e com disposições de tal jaez que vinha da capital do Estado para o sertão goiano uma comissão incumbida de exercer atos de justiça. E não é tudo.[…] [190
Então a Comitiva saía pelos becos e arruados da antiga Vila Boa, semelhando uma coorte com o centurião na vanguarda, ladeando o Magistrado e sua equipe que vinha mais recuada. Atravessou as ruas da Capital como em passeata solene naquela manhã, ganhando a estrada rumo a São José do Duro – uma travessia calculada para 906 quilômetros.

Militares em frente ao Palácio do Governo na Cidade de Goiás em época ignorada.

Militares em desfile na Cidade de Goiás, num evento cívico. A ponte é sobre o rio Vermelho e a passeata faz lembrar a saída da Comissão Celso Calmon da capital rumo a São José do Duro (Fotografias em acervo do jornalista Marco Antônio Veiga de Almeida).
Ao entardecer, Juiz de Direito e Comissionados foram dar à margem esquerda do rio Uru, onde pernoitaram, conforme narra o então Escrivão da Comissão191, Guilherme Ferreira Coelho:
[…] vendo as grimpas da Serra Dourada, já clareadas pela lua, que parecia brincar no céu por entre nuvens em movimento. Toda a Comitiva se locomovia à procura de Curralinho, hoje Itaberaí, onde chegou, depois de poucas horas de trajeto para em seguida dar em Jaraguá, onde tiveram a noite na Fazenda das Estacas.
À saída da cidade, um panorama agradabilíssimo. Além, muito distante, iluminadas pelos primeiros clarões do dia, as criptas da Serra Negra, nome que lhe é propício por assemelhar ao verde-escuro das densas matas que a cobrem, em parte, com o negrume das noites de tormenta. Aquém, a grande nuvem produzida pela evaporação das águas do Rio das Almas que, como um iceberg monstro, acompanhava a descida das correntes. E, ao cair da noite, foram dar numa bela fazenda, vendo a lua com seus argênteos raios dourando aqueles já solitários ermos e no terreiro da casa alguns cães de caça ladravam com a aproximação e no curral o velho vaqueiro colocava nos apartadores o gado ali recolhido. Um velho sertanejo os veio encontrar e dar-lhes o favor que solicitaram para o descanso.
No outro dia, alcançaram São José do Tocantins [192, local em que, à Comitiva, incorporaria o Promotor de Justiça efetivo da Comarca de Posse e comissionado no Termo de São José do Duro, Dr. Francisco de Borjas Mandacarú e Araújo. Aí deram um compasso de onze dias, aguardando o membro do Ministério Público, que retornaria de uma viagem.
Chegando o Promotor, a Comitiva, agora acrescida de vinte e tantas praças, ali encontradas, de dois empregados do Promotor e deste, rumara para Cavalcante, que ficava a cento e oitenta quilômetros adiante.
Era estação das secas e as labaredas devoravam as pastagens.
Pernoitaram em Veredinha, bifurcação das estradas para Muquém e Cavalcante.
Uma noite de intranqüilidade a que transcorreu ali; os animais afugentados e em disparada, deixaram o encosto, procurando as imediações das barracas da Comissão no acampamento e alguns cincerros lhes foram arrancados, ouvindo-se pela madrugada o retinir dos mesmos, à grande distância, nas saliências dos terrenos fronteiros. Eram os índios Canoeiros que se haviam aproximado e praticado uma das suas brincadeiras, como se expressam os moradores daqueles sítios.(Idem)
Ao amanhecer, o som da corneta anunciou o reinício da caminhada, ainda conforme Ferreira Coelho:
Transpostos os rios Bagagem, Tocantins e a grande Serra de Cavalcante, que ficam de permeio entre essas localidades, com alguns pernoites, noites nos campos, ora à beira de um regato, outras vezes à margem da estrada, penetraram em Cavalcante.
Ao destacamento juntaram-se outras praças, encontradas, em descanso, quando convergiam para Arraias, em vista das ulteriores determinações. Reabastecida a Comitiva dos gêneros necessários à alimentação da força, rumaram para a vila Chapéu. A denominação de chapéu procede de haver sido encontrado, no lugar, o chapéu de um homem louco, devorado pelas onças.
Ali estacionaram três dias, vendo alongar-se, severo e majestoso, o imenso Vale do Paranã. Em frente, na trajetória traçada, estava a cidade de Arraias.
A escolta policial era composta do grosso da tropa da capital e dos elementos apanhados nas cidades por onde passava.
[183 Discussão deduzida pelo autor em paráfrase do Relatório escrito pelo próprio juiz Celso Calmon. Em O Barulho e Os Mártires vamos ver que a competência seria da Justiça Federal e que a história teria sido outra, caso o processo e julgamento ficassem, como depois ficaram, a cargo da União.
[184 Hoje Fórum Des. Emílio Francisco Póvoa.
[185 Palavras textuais do Juiz Celso Calmon Nogueira da Gama. A época era bem própria: o juiz seguia os conselhos de um Desembargador Presidente, de um Senador e de um Deputado Federal, o primeiro e o último, como se viu, cunhados do segundo. Uma espécie de Poder tripartido, unificado e híbrido. Tal redação consta de Relatório que Celso Calmon fez ao Governo do Estado, em 1919, depois do resultado da sua “diligência” comissionada em São José do Duro.
[186 Celso Calmon foi a Desembargador no final dos anos 20, mas ficou pouco tempo no cargo, em favor do qual trocara vidas de inocentes, como a dos Nove do Tronco e daqueles que foram massacrados em Lagolândia, município de Pirenópolis, na ação policialesca de 1925, que comandou contra os seguidores de Santa Dica (Veja a respeito o Cap. XVIII). Uma das primeiras providências tomadas por Pedro Ludovico, em 1930, foi colocá-lo em disponibilidade, livrando-se dele em Goiás. Calmon voltou para sua terra, no Espírito Santo, sem deixar notícias.
[187 BRITO, Francisco de. Memórias de Outro Tempo, pág. 82.
[188 Na Praça da Igreja do Rosário fica a esquina do antigo prédio do Tribunal de Justiça.
[189 Destaque constante do próprio original.
[190 Relatório constante do nosso livro O Duro e a Intervenção Federal – Relatório ao Ministério da Guerra.
[191 O prof. Jacy Siqueira anotou, atualizou e publicou a 2ª ed. do livro Expedição Histórica nos Sertões de Goiás, 1937, de Guilherme Ferreira Coelho.
[192 Hoje, Niquelândia (GO).
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